Os hinos litúrgicos caracterizam-se pela estranha magia da língua: vogais longas, com preferencia pelos ditongos; determinadas combinações de sons; recitativos monótonos; a melodia do verso encontra-se “abaixo do limiar dos conceitos intelectuais”, como se as palavras fossem feitas para acomodar-se a um ritmo já preexistente, à inaudível harmonia das esferas. Essa magia linguística é que exprime as angústias apocalípticas e júbilos angélicos do “homo cluniacensis”. Pela magia linguística, o hino representa, em forma adequada, certos sentimentos religiosos – a “majestas tremenda”, o “amor mystic” – que são, por si mesmos, inefáveis: os sentimentos “numinosos”. Esse traço característico é comum aos hinos de todas as religiões em certa fase da sua evolução: ressoam hinos assim nos templos budistas e nas sinagogas. O hino litúrgico em língua latina distingue-se pelo fato de conservar a capacidade de exprimir conteúdos dogmáticos de maneira muito precisa. Naqueles hinos marianos, porem, o ritmo prejudica o conteúdo, transformando o dogma mariano em substrato de uma poesia quase erótica; as censuras não são determinadas pela lógica da frase, e sim pela música do verso; um elemento musical, a rima, rompe o equilíbrio métrico; os símbolos, que pretendem representar o dogma, tornam-se independentes.
O grande poeta dessa fase é Adam de St. Victor. Grande poeta exatamente porque o valor da sua poesia reside mais nas qualidades literárias do que nas qualidades litúrgicas. O poeta do “Salve, mater salvatoris” e do “Ave, virgo singularis” um criador de símbolos: inventou ou popularizou um conjunto impressionante de metáforas mariológicas. Desde Adam de St. Victor, toda a gente entende imediatamente o
“Rosa mystica,
Turris Davidica,
Turris ebúrnea,
Domus aurea,
Foederis arca,
Juana coeli,
Stella matutina.”
Turris Davidica,
Turris ebúrnea,
Domus aurea,
Foederis arca,
Juana coeli,
Stella matutina.”
Adam de St. Victor moveu esses símbolos por meio de uma arte extraordinária do verso, de troqueus de sete ou oito silabas, fortemente ritmadas e suavemente rimadas. Arte quase parnasiana, que devia acabar, nos seus imitadores, em rotina.
O hino salvou-se pela influência do grande movimento religioso que de deu ímpeto inédito aos sentimentos numinosos do franciscanismo. Mas a última palavra coube à solidificação do sentimento: a volta ao conteúdo dogmático sem o qual o hino da Igreja perderia a sua significação especial. Por isso, o maior teólogo dogmático da Igreja romana também é o seu maior poeta litúrgico: Tomás de Aquino. Os seus poucos hinos – “Pange, lingua, gloriosi“ e “Lauda, Sion, Salvatorem” – reúnem duas qualidades que raramente se encontram na poesia lírica: a maior precisão e maior musicalidade. Seria possível comentar esses hinos como se fossem tratados teológicos sobre a eucaristia; ao mesmo tempo, versos como
“Tantum ergo sacramentum
Veneremur cernui:
Et antiquum documentuum
Novo cedat ritui:
Praestet fides supplementum
Sensuum defectui...”
Veneremur cernui:
Et antiquum documentuum
Novo cedat ritui:
Praestet fides supplementum
Sensuum defectui...”
ficam indelevelmente na memória, o que é um dos critérios mais seguros da grande poesia.
Esta última fase da hinografia latina tem, outra vez, importância mais do que literária. A Igreja romana não adotou o “credo ut intelligam”, algo fideísta, de santo Anselmo, mas tomou como base do seu dogma a filosofia aristotélica. Também não foi aos discípulos entusiasmados de são Francisco, e sim aos filhos eruditos de são Domingos, que coube a tarefa de construir a catedral da escolástica. Quando ficou pronto o edifício, que o “homo liturgicus” de Cluny começara, era um sistema filosófico e uma instituição jurídica.
Otto Maria Carpeaux
História da Literatura Ocidental, p. II, cap. I
História da Literatura Ocidental, p. II, cap. I