Um ponto nevrálgico:
Em síntese: As relações entre cristãos gregos e latinos se tornaram tensas por um motivo teológico: o Espírito Santo procede do Pai e do Filho? (posição latina) ou procede do Pai pelo Filho? (posição grega). A controvérsia se tornou candente nos séculos IX-XI, levando ao cisma bizantino de 1054, cisma que até hoje perdura, embora as conversações dos teólogos de parte a parte estejam contribuindo para aproximar entre si os irmãos. No fundo, pode-se dizer que a controvérsia é mais lingüistica do que propriamente teológica: gregos e latinos não entendem do mesmo modo o vocábulo "proceder".
Dando continuidade ao artigo anterior, voltamos-nos explicitamente para a controvérsia do Filioque, tida pelos gregos como motivo de cisma em 1054. Na verdade, o Evangelho afirma que o Espírito Santo procede do Pai (cf. Jo 15, 26); o Credo niceno-constantinopolitano (381) repetiu esta profissão de fé. Todavia os latinos acrescentaram ao Credo a partícula Filioque, professando que o Espírito procede do Pai e do Filho. Isto deu origem a calorosa controvérsia, pois os cristãos orientais se puseram a acusar os ocidentais de haver alterado o Símbolo da Fé.
A seguir, examinaremos o desenrolar dos acontecimentos desde o início e a atual posição da Igreja.
O Problema Lingüístico
A doutrina segundo a qual o Espírito Santo procede do Pai, está no Evangelho de S. João: "...o Espírito da verdade, que procede (ekporeúetai) do Pai" (15,26).
A Escritura também se refere à relação do Espírito com o Filho, quando Jesus diz: "Receberá do que é meu e vô-lo anunciará" (Jo 16,14s) ou ainda: "Quando vier o Paráclito, que vos enviarei de junto do Pai" (Jo 15,26).
Estes dizeres levaram alguns Padres gregos a afirmar que o Espírito Santo é "do Pai e do Filho". Assim S. Cirilo de Alexandria (+444):
"O Espírito é o Espírito de Deus Pai e, ao mesmo tempo, Espírito do Filho, saindo substancialmente de ambos simultaneamente, isto é, derramado pelo Pai a partir do Filho" (De adoratione, livro I, PG 68,148).
S. João Damasceno (+749) professava:
"O Espírito Santo provém das duas Pessoas simultaneamente" (De recta fide 21, PG 76,1408).
S. Epifânio de Salamina (+403) escrevia:
"É preciso crer, a respeito de Cristo, que Ele vem do Pai, é Deus proveniente de Deus, e, a respeito do Espírito, que Ele provém do Cristo, ou, melhor; de ambos, pois Cristo disse: '...Ele procede do Pai' e 'receberá do meu'" (Ancoratus 67).
"Já que o Pai chama Filho o que procede do Pai e Espírito Santo o que provém de ambos,... fica sabendo que o Espírito Santo é a luz que vem do Pai e do Filho" (Ancoratus 71).
Dídimo de Alexandria (+398) professava, comentando palavras de Jesus:
"Ele não falará sem mim e sem a decisão do Pai, porque Ele não tem origem em si, mas é do Pai e de mim. Pois o que Ele é como subsistência e como palavra, Ele o é pelo Pai e por mim" (De Spiritu Sancto 34).
Deve-se observar que tais autores admitem, de certo modo, a origem do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, mas não dizem que o Espírito procede do Filho. Segundo esses escritores, o Espírito procede do Pai pelo Filho ou ainda provém do Filho, mas não procede do Filho. Acontece, porém, que, para os latinos, a tradução do verbo ekporeúetai, proceder, não tinha exatamente o mesmo sentido que para os gregos. Para estes, ekporeúetai significava procedência a partir de um Princípio absoluto, não procedente, não gerado, como somente é o Pai; o Filho é um Principio gerado, do qual, por conseguinte, não se pode dizer que dele procede (ekporeúetai) o Espírito Santo.[1]
Já que os latinos traduziam ekporeúesthai por procedere, entendido como "derivar-se de, originar-se de, provir de ...", aplicaram o verbo latino para designar a relação do Filho com o Espírito Santo[2]. Ora isto ofendeu os gregos, que fizeram deste gesto a ocasião de candente litígio até hoje não plenamente resolvido.
O desenrolar dos acontecimentos vai, a seguir, apresentado.
As etapas da controvérsia
A profissão de fé mais antiga que menciona a proveniência do Espírito a partir do Pai e do Filho é um Credo atribuído a S. Dâmaso Papa (366-384)[3]. Outras profissões de fé dos séculos IV-VI incluem o Filioque, geralmente na Espanha, onde estava difundida a concepção do Filioque.
Compreende-se então que alguns Concílios regionais de Toledo tenham feito idêntica declaração. Foi o que se deu em 447, 633, 638...
Muito mais importante e ousada foi a inserção do Filioque no Credo niceno-constantinopolitano. Os Concílios da Espanha adotaram esta medida no intuito de mais difundir tal crença. O primeiro testemunho de tal inserção data de 589: o Concílio de Toledo III recitou o símbolo da fé com o Filioque, e pronunciou o anátema sobre quem recusasse crer que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho; os conciliares, por quanto se depreende das atas do Concílio, julgavam que tal doutrina já fora professada por Nicéia I e Constantinopla I. - A inserção do Filioque no símbolo foi igualmente professada pelos Concílios regionais de Toledo VIII (653), XII (681), XIII (683), XIV (688), XVII (694), como também pelo 4º Concilio regional de Braga (675) e pelo de Mérida (666).
Enquanto isto acontecia, alguns teólogos rejeitavam o acréscimo do Filioque ao símbolo. A sé de Roma ou os Papas aceitavam a doutrina do Filioque, mas não favoreciam a inserção feita no Credo; repetidamente rejeitaram instâncias de cristãos sinceros que pediam à Santa Sé o reconhecimento e a oficialização do Filioque no símbolo de fé. Tinham consciência de que tal gesto podia melindrar os gregos, que, por razões culturais, lingüisticas e políticas, se distanciavam aos poucos da Sé de Roma (desejosos de fazer de Constantinopla a Nova Roma). Por conseguinte, nos séculos VI/VIII os Papas se abstinham de falar do Filioque na sua profissão de fé.
Da península ibérica a profissão do Filioque passou para o reino dos francos. Como atestam os Livros Carolinos, redigidos em 794 por ordem de Carlos Magno, tal uso era comum no território franco. A propagação deste costume era, em grande parte, movida pelo desejo de afastar qualquer heresia que restaurasse o adopcionismo ou o subordinacionismo. Em 809 o Filioque era cantado na capela de Carlos Magno.
No séc. VIII deu-se ainda o caso dos monges latinos de Jerusalém. Com efeito; Carlos Magno estava em boas relações com o Califa Haroum-al-Raschid, senhor da Terra Santa; em conseqüência o califa outorgou ao rei dos francos uma certa soberania sobre Jerusalém. Havia monges latinos estabelecidos no monte das Oliveiras, que seguiam suas Regras como eram vigentes no país franco e, por isto, cantavam o Filioque no Credo. Quando certo dia os monges gregos os depreenderam observando este costume ocidental, acusaram-nos de heresia e os agrediram, considerando-os bárbaros. Os monges latinos então apelaram para o Papa Leão III. Este houve por bem escrever uma encíclica, que ele enviou aos monges francos de Jerusalém, dizendo-lhes:
"Nós vos enviamos este símbolo de fé ortodoxa, para que vós, assim como o mundo inteiro, guardeis inviolavelmente a fé segundo a profissão da Igreja Romana Católica e Apostólica".
O Papa acrescenta por duas vezes que o Espírito procede do Pai e do Filho, e termina afirmando que este artigo pertence à íntegra da fé católica.
Leão III enviou a Carlos Magno a carta dos monges de Jerusalém, já que estes contavam com a tutela do monarca. O Imperador então reuniu um sínodo em Aquisgrano (809), que reafirmou a doutrina do Filioque e cujas atas foram enviadas ao Papa mediante delegados. O Papa recebeu estes emissários; mostrou-se plenamente de acordo com as conclusões do Concílio de Aquisgrano fundamentadas na tradição latina, mas não quis consentir na inserção do Filioque no Credo, mantendo assim a posição de seus antecessores. Eis o trecho final do diálogo de Leão III com os legados francos:
"Legados: Cantar o Credo sem o Filioque não dará aos fiéis a ocasião de crer que tal palavra foi condenada? Que remédio podemos dar a isto?
O Papa: Se de antemão me tivessem consultado sobre o acréscimo, eu o teria proibido. Eis agora o expediente que me aflora à mente: pouco a pouco no palácio imperial deixai de cantar o Filioque no símbolo de fé; dai como razão para isto o fato de que não é cantado na Santa lgreja Romana. Quando tiverdes cessado de o fazer; todos também cessarão. Desta maneira os fiéis guardarão o que tiverem aprendido, e desaparecerá um canto ilícito sem escândalo para a fé".
Esta declaração revela bem a prudência da Santa Sé, que, apesar de tudo, não conseguiu convencer os francos, levando-os à obediência, e queria evitar novos choques com os gregos. Para evitar, frente a estes, qualquer mal-entendido, Leão III mandou gravar sobre duas placas de prata o mesmo texto do Credo Niceno-Constantinopolitano em grego e em latim e quis que fossem afixadas na confissão (altar-mor) de São Pedro como testemunho de comunhão de fé entre o Oriente e o Ocidente.
A pressão dos cristãos ocidentais continuou a se exercer sobre a Santa Sé, que resistiu até o século XI. Em 1013, porém, o Imperador Henrique II (1002-1024) instou, mais uma vez, junto ao Papa Bento VIII (1012-1024) para que inserisse o Filioque no canto do Credo em Roma; o Pontífice anuiu ao pedido em 1014, ficando assim os latinos unânimes na observância de tal praxe.
No século IX, o Patriarca Fócio de Constantinopla levantou de novo a questão acusando os latinos de ser "transgressores da Palavra de Deus, corruptores da doutrina de Jesus Cristo, dos Apóstolos e dos Padres; seriam novos Judas a dilacerar os membros de Cristo". O Patriarca era movido não somente por zelo religioso, mas também por ambição política, já que desejava exaltar a nova Roma em detrimento da primeira. Redigiu uma carta encíclica aos Patriarcas e Arcebispos do Oriente, em que abordava questões discutidas, inclusive a do Filioque, e chegou a escrever:
"O símbolo de fé diz somente que o Espírito Santo procede do Pai. Por conseguinte o símbolo afirma que o Espírito Santo procede do Pai somente".
Como se vê, Fócio usa uma dialética vazia, que peca contra as regras da Lógica, maltratando o advérbio somente.
Em 867, Fócio reuniu em Constantinopla um Concílio anti-romano, pouco freqüentado.
Depois de Fócio, a situação se acalmou até o Patriarca Sísimo, de Constantinopla, que em 995 renovou os ataques aos latinos. As suas invectivas chegaram ao termo final sob o Patriarca Miguel Cerulário, quando em 1054 se deu a ruptura, até hoje existente, entre gregos e latinos.
De então por diante o Filioque foi sendo abertamente professado pelos Papas e pelos Concílios do Ocidente. Com efeito, em 1098 um Concílio em Bari (Itália) travou um debate com os gregos, professando o Credo ampliado. Em 1215 o Concílio do Latrão IV professou a processão do Espírito a partir do Pai e do Filho na sua exposição dogmática Firmiter credimus. Em 1274 o Concílio de Lião II condenou com anátema os que negavam tal artigo.
Ao afirmar que o Espírito procede do Pai e do Filho, os latinos não quiseram negar a fórmula grega "... do Pai pelo Filho"; elas se conciliam entre si, pois que o Pai gera o Filho dando-lhe a peculiaridade de ser Princípio do qual procede o Espírito Santo (está claro que isto não implica prioridade de dignidade ou de tempo para o Pai em relação ao Filho e ao Espírito Santo).
A teologia escolástica medieval latina, seguindo as pegadas de Santo Agostinho (+430), prova que o Espírito Santo procede do Filho, pois, se assim não fosse, não se distinguiria do Filho. Com efeito, em Deus há uma só essência ou divindade, na qual só pode haver distinção onde há oposição relativa; ora, para que o Espírito se distinga do Filho, tem que se lhe opor como o termo de processão se opõe ao ponto de partida da processão.
A atual posição da Igreja Católica
A Igreja Católica continua a professar o Filioque em sua Liturgia e em suas diversas declarações, mas não impõe aos orientais a sua inserção no Credo.
Assim já no Concílio de Lião II (1274) o Papa Gregório X pediu aos gregos que reconhecessem a verdade dogmática do Filioque, mas não os obrigou a cantar o símbolo da fé com esse acréscimo. Mesmo assim os gregos presentes a tal Concílio cantaram o símbolo com a partícula controvertida.
Também no Concílio geral de Florença, o Papa Eugênio IV (1431-1447) não obrigou os gregos a cantar o Credo ampliado. Da mesma forma Clemente VIII (1592-1605) não exigiu que os rutenos uniatas[4] cantassem o Filioque, desde que o aceitassem como artigo de fé. Mais importante ainda é a bula Etsi Pastoralis de Bento XIV, promulgada em 1742, que reza explícita e definitivamente:
"Embora os gregos tenham a obrigação de crer que o Espírito Santo procede também do Filho, não são obrigados a professá-lo no símbolo".
Esta regra está vigente até nossos dias.
Em 1995 deu-se um acontecimento significativo: o Patriarca Bartolomeu I, de Constantinopla, esteve reunido com o Papa João Paulo II aos 29/06 na basílica de São Pedro em Roma, ocasião em que o Papa pediu ao Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos que esclarecesse a questão do Filioque, a fim de facilitar o bom relacionamento com os orientais. Desse pedido resultou um longo texto assinado aos 08/09/1995, do qual extraímos a seguinte passagem, que reafirma quanto foi dito na Lição 1 deste Módulo:
"Apresentamos aqui o sentido doutrinal autêntico do Filioque na base da fé trinitária professada pelo Concílio Ecumênico de Constantinopla. Damos esta interpretação abalizada, conscientes da pobreza da linguagem humana para exprimir o inefável mistério da SS. Trindade...
A Igreja Católica interpreta o Filioque referindo-o à sentença normativa e irrevogável do Concilio Ecumênico de Constantinopla em seu símbolo... Na base da tradição teológica latina anterior, alguns Padres do Ocidente, como S. Hilário, S. Ambrósio, S. Agostinho e S. Leão Magno, haviam professado que o Espírito Santo procede (procedit) eternamente do Pai e do Filho.[5]
Como a Biblia latina (a Vulgata e as traduções latinas anteriores) tinha traduzido Jo 15,26 (parà tou Patrós ekporeúetal) por 'qui a Patre procedit', os latinos traduziram o ék tou Patrós ekporeuómenon do Símbolo niceno-constatinopolitano por 'ex Patre procedentem'. Assim foi criada uma falsa equivalência a propósito da origem do Espírito Santo entre a teologia oriental da 'ekpóreusís' e a teologia latina da 'processio'.
A 'ekpóreusis' grega significa apenas a relação de origem do Espírito frente ao Pai tão somente, Pai que é o Princípio sem princípio da Trindade. Ao contrário, a 'processio' latina é um termo mais amplo que significa a comunicação da divindade consubstancial do Pai ao Filho e do Pai, com e pelo Filho, ao Espírito Santo. Confessando o Espírito Santo 'ex Patre procedentem', os latinos supunham um 'Filioque' implícito, que seria explicitado mais tarde na sua versão litúrgica do Credo" (Ver La Documentation Catholique, 5/11/1995, p. 942).
Esta explicação, como dito, não é senão a que propusemos em nosso primeiro subtítulo pp. 120s. - Reduz o problema a um mal-entendido lingüístico. É para desejar que encontre acolhida entre os nossos irmãos orientais.
Notas:
[1] Quando se fala do Pai como princípio absoluto, não se tenciona dizer que o Filho é relativo ou é inferior ao Pai. Em Deus não há maior ou menor nem anterior ou posterior.
[2] Do verbo latino faz-se 'processão', vocábulo da Teologia Sistemática, que difere de 'procissão'.
[3] Há quem diga que a prioridade toca a S. Ambrósio de Milão (+397).
[4] Rutenos são os cristãos dependentes da antiga metrópole Kiev (Ucrânia), que após o cisma se uniram à Santa Sé pelo tratado de Brest-Litovak (25/12/1595). São ditos "uniatas" porque se uniram a Roma.
[5] S. Hilário de Poitiers (+367) escreve: "A quem julga que há diferença entre receber do Filho (Jo 16,15) e proceder (procedere) do Pai (Jo 15,26), respondemos que é certo que é uma só e mesma coisa receber do Filho e receber do Pai" (De Trinitate VIII 20). É neste sentido da comunicação da Divindade pela processão que S. Ambrósio de Milão formula o Filioque: "O Espírito Santo, quando procede (procedit) do Pai e do Filho, não se separa do Pai nem se separa do Filho" (De Spiritu Sancto 1,11,120). Desenvolvendo a teologia do Filioque, S. Agostinho quis salvaguardar a monarquia do Pai no seio da comunhão consubstancial da Trindade: "O Espírito Santo procede do Pai a título de princípio (principaliter), e, pelo dom intemporal do Pai ao Filho, procede do Pai e do Filho em comunhão (communiter)" (De Trinitate XV 25,47). Ver S. Leão Magno, sermões LXXV, 3 e LXXVi, 2.
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