terça-feira, 15 de março de 2011

São Tomás de Aquino e o dom de línguas.

Por John Lennon J. da Silva

Existe hoje muita confusão quando ao “dom de línguas”, muitos grupos e comunidades ligadas a RCC, demonstram forte ênfase nos “carismas” e isto têm proporcionado desatenção de alguns lideres e coordenadores ligados ao movimento no Brasil.

É querido pelos últimos dois papas uma “comunhão madura” e fecunda das Novas Comunidades quanto a sua íntima relação, e consonância com a doutrina católica e com todas “as componentes eclesiais” como disse o Papa Bento XVI, há então de trabalhar-se para cumprir esta tarefa.

Por isto o “dom das línguas” hoje tem sido o foco de críticas, há também de mencionar a heterodoxia de indivíduos quanto ao este dom, além da alegação de estarem verdadeiramente sendo agraciados com tal manifestação, sem entrar profundamente no tema, estou recomendando aos leitores e internautas que visitam o site, um sublime comentário ao cap. 14 da I Carta aos Coríntios produzida por nada menos que São Tomás de Aquino “doutor dos doutores” e “teólogo dos teólogos” na Igreja.

Neste capitulo da I Carta aos Coríntios, São Paulo o apostolo faz menção ao “dom de línguas” extratos deste capítulo são utilizados comumente e de forma pouco exegética para se justificar certas incoerências e equívocos quanto a este carisma que é um dos sete dons do Espírito Santo como ensina e enumera o Catecismo da Igreja Católica.

É muito útil a leitura deste comentário teológico para compreensão ortodoxa do assunto e de uma maturidade em relação ao tema, por isto publico aqui e espero ajudar aos cristãos neste sentido, a leitura ajudara tanto na percepção como na interpretação deste dom, sob o olhar da doutrina tradicional da Igreja das palavras e síntese do grande Tomas de Aquino.


Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta aos Coríntios (1) Capítulo 14.

Texto sobre o dom de línguas.

Lição 1: 1Co 14,1-4

Primazia do dom da Profecia sobre o dom de línguas.

1. Buscai a caridade; mas também desejai com emulação os dons espirituais, especialmente a profecia.

2. Pois o que fala em línguas não fala aos homens senão à Deus. Em efeito, nada ele entende: diz verbalmente coisas misteriosas.

3. Pelo contrário, o que profetiza fala aos homens para sua edificação, exortação e consolação.

4. O que fala em línguas, edifica-se a si mesmo; o que profetiza, edifica toda a assembléia.

Uma vez afirmada a excelência da caridade à respeito dos demais dons, logicamente compara agora o Apóstolo os demais dons entre si, e mostra a excelência da profecia sobre o dom das línguas. E para isto faz duas coisas. Primeiro mostra a excelência da profecia sobre o dom das línguas, e logo como se deve usar tanto do dom das línguas como o da profecia.
Primeiramente, faz duas coisas. Faz ver que o dom da profecia é mais excelente que o dom das línguas, em primeiro lugar por razões relativas aos infiéis, e em segundo por razões da parte dos fiéis.

A primeira parte se divide por sua vez em duas. Primeiro mostra como o dom da profecia é mais excelente que o dom das línguas pelo uso daquele nas exortações ou ensinamentos; em segundo termo, pelo que vê do uso das línguas, que é para orar. Com efeito, para estas duas coisas é o uso das línguas: Por isso aquele que fala em línguas peça para poder interpretar (14,13). Enquanto ao primeiro, ainda duas coisas. Desde logo antepõe uma, pela qual se assegura o que segue; e ela é isto: Dito está que a caridade excede a todos os dons. Logo se isto é assim, buscai, isto é, esforçadamente, a caridade, que é o doce e proveitoso vínculo dos espiritos. Ante todas as coisas a caridade, etc. (1P 4,7). Sobre todas as coisas tenham caridade (Cl. 3,14).

Em segundo lugar adiciona o que liga com o que segue. E isto é aquilo de: desejai com emulação, etc. Como se dissera: Embora a caridade seja o maior de todos os dons, contudo os demais não são desdenháveis, senão que desejáveis, desejai com emulação, isto é, ardentemente amando os dons espirituais do Espírito Santo. E quem os fará mal se vos esforçais pelo bem? (1P 3,13). Pois embora a emulação às vezes se toma por fervoroso amor, as vezes por inveja, contudo não tem equivoco: mas bem um procede do outro, porque, com efeito, zelar e desejar com emulação designam um fervoroso amor a determinada coisa.

Mas ocorre que a coisa amada de maneira tão fervorosa é amada por alguém que não suporta coparticipação, senão que a quer somente para ela e exclusivamente. E isto é o zelo, que segundo alguns é um intenso amor que não suporta coparticipação na coisa amada. Mas nas coisas espirituais ocorre que muitos podem participar delas perfeitissimamente, em vez de um só nas que não podem participar muitos.

Assim é que na caridade não se dá esse zelo que não tolera coparticipação no que se ama e que só se encontra enquanto coisas corporais, no que sucede que se alguém tem aquilo que ele mesmo zela, sofre; do qual resulta um desejo com emulação que vem a ser inveja. De modo que se eu amo honra e riquezas, sofro se alguém as possui, e consequentemente o invejo. E assim é patente que do zelo surge à inveja.

Em consequência, quando se disse: Desejai com emulação os dons espirituais, não se trata da inveja, porque as coisas espirituais podem ser possuidas por muitos; e se disse que se desejam com emulação é só para induzir a um fervente amor de Deus.

Mas como nas coisas espirituais existem certos graus, porque a profecia excede o dom de línguas, se disse: especialmente a profecia, como se dissera: entre os dons espirituais desejai com maior emulação o dom da profecia. Não extingais o Espirito; não desprezeis a profecia (1Filem 5,19-20).

Mas para a explicação de todo o capítulo devem-se ter desde agora em conta três coisas, a saber: o que é profecia, de quantos modos se designa a profecia na Sagrada Escritura, e o que é falar em línguas.

Acerca do primeiro se deve saber que profeta é algo assim como o que vê ao longe, e em segundo lugar alguns o entendem como falar prognósticos, mas todavia melhor se toma por guia, faról, que é o mesmo que ver.

Pelo qual em 1 Reis 9,9 se disse que a quem agora se chama profeta em outro tempo se chamava vidente. Daqui que a visão daquelas coisas que estão distantes, ou que são futuros incertos, ou que estão por cima da nossa razão, se designa com o nome de profecia.

É, pois, a profecia a visão ou manifestação de futuros incertos ou do que excede a inteligência humana. Mas para tal visão se requerem quatro coisas.

Com efeito, como nosso conhecimento é mediante as coisas corporais e por espectros ou imagens tomadas das coisas sensíveis, primeiramente se necessita que na imaginação se formem semelhanças corporais das coisas que se mostram, como ensina Dionísio, pelo qual é impossível que nos ilumine a luz divina se não seja mediante a diversidade das coisas sagradas envoltas em véus.

O que em segundo lugar se necessita é uma luz intelectual que ilumine o entendimento sobre coisas que se devem conhecer acima de nossa natural cognição. Com efeito, como a luz intelectual não se dá senão sobre as semelhanças sensíveis formadas na imaginação para serem entendidas, aquele a quem tais semelhanças se mostram não pode ser chamado profeta, mas senão um sonhador, como o Faraó, que embora viu espigas e vacas, as quais indicavam certos fatos futuros, como não entendeu o que viu, não se chama profeta, senão que o é, aquele José, que fez a interpretação. E o mesmo há que dizer de Nabucodonosor, que viu a estátua, mas não entendeu. Pelo qual tampouco ele foi chamado profeta, senão a Daniel. Pelo qual se disse em Daniel 10,1: Lhe foi dada na visão sua inteligência.

O que em terceiro lugar se necessita é ousadia para anunciar o revelado. Pois para isto fez Deus suas revelações: para que sejam manifestadas aos demais. Eis, eu ponho minhas palavras na tua boca (Jr. 1.9).

O quarto são os milagres, que são para a certeza da profecia. Pois se não fizerem alguns, que excedam as forças naturais, não crerão naquilo que está por cima da cognição natural.

Pelo que aponta ao segundo, os modos da profecia, sabemos que existem diversos modos de ser profeta. Com efeito, às vezes se diz que alguém é profeta porque tem estas quatro coisas, a saber: que vê visões imaginárias, e têm a compreensão delas, e ousadamente as manifiesta aos demais e também faz milagres, e de um como está dito em Numeros 12,6: Se existe entre vós um profeta, etc.

Chama-se também às vezes profeta o que só tem as visões imaginárias, mas impropriamente e muito de longe.

Também se diz às vezes profeta ao que tem a luz intelectual para explicar também as visões imaginárias, ou feitas a ele mesmo, ou a outros; ou para expor os ditos dos profetas ou as Escrituras dos Apóstolos.

E assim diz-se profeta a todo o que discerne as escrituras dos doutores, porque se interpretam com o mesmo Espírito com que são declaradas. Pelo qual se podem chamar profetas a Salomão e a David, enquanto tiveram luz intelectual para uma clara e sutíl penetração; mas a visão de Davi foi tão só intelectual.

Se diz também que alguém é profeta pelo único fato de que declare ditos de profetas, ou os exponha, ou os cante na Igreja, e deste modo se diz que Saul se contava entre os profetas (I Rs 19,23-24), ou seja, entre aqueles que cantaram os ditos dos profetas.

Diz-se também que alguém é profeta se faz milagres, segundo aquilo de que o corpo morto de Eliseu profetizou (Sl 48,14), ou seja, que fez um milagre.

Mas o que aqui diz o Apóstolo em todo o capítulo sobre os profetas deve-se entender do segundo modo, isto é, do que se diz que profetiza aquele que explica em virtude da luz divina intelectual as visões recebidas por ele mesmo ou por outros. É claro que aqui se trata desta classe de profetas.

Quanto ao dom de línguas devemos saber que como na Igreja primitiva eram poucos os consagrados para pregar pelo mundo a fé de Cristo, a fim de que mais facilmente e a muitos anunciassem a palavra de Deus, o Senhor deu-lhes o dom de línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de maneira que nas línguas dos diversos povos falassem as de todos. Pelo qual disse o Apóstolo: Dou graças a Deus porque falo as línguas de todos vós (1Cor 14,18). E em Atos 2,4, se disse: Falavam em várias línguas, etc. E na Igreja primitiva muitos alcançaram de Deus este dom.

Mas os corintios, que eram de indiscreta curiosidade, preferiam esse dom que o da profecia. E aqui por falar em língua, o Apóstolo entende que em língua desconhecida e não explicada: como se alguem falasse em língua teutônica a um galês, sem explicá-la, esse tal fala em língua. E também é falar em língua o falar de visões somente, sem explicá-las. De modo que toda locução não entendida, não explicada, qualquer que seja? Seja, propriamente falar em língua.

Visto estas coisas, dediquemo-nos à exposição da carta, que é clara. E para isto faz o Apóstolo duas coisas. Primeramente prova que o dom de profecia é mais excelente que o dom de línguas; e em segundo lugar rechaça qualquer objeção: Volo autem vos...: Desejo que faleis todos em línguas; prefiro, contudo, que profezeis (1Cor 14,5). Que o dom de profecia exceda o dom de línguas o prova com duas razões, das quais toma a primeira da comparação de Deus com a Igreja; e a segunda razão se toma da comparação dos homens com a Igreja.

A primeira razão é a seguinte: Aquilo pelo qual faz o homem as coisas que não são unicamente em honra de Deus, mas também para utilidade dos próximos é melhor que aquilo que se faz tão unicamente em honra de Deus. É assim que a profecia é não unicamente em honra de Deus, mas também para a utilidade do próximo, e pelo dom de línguas se faz unicamente o que é em honra de Deus. Logo etc.

E esta razão se desenvolve, primeiramente enquanto ao que o que é dito em língua, tão unicamente honra à Deus. O expressa com essas palavras: O que fala em língua, se entende que desconhecida, não lhes fala aos homens, se isto fosse, ao entendimento dos homens, mas senão a Deus, isto é, tão unicamente em honra de Deus (1Cor 14,2). Ou à Deus, porque o mesmo Deus entende: O ouvido de Deus zeloso escuta tudo, etc. (Sb 1,10). E o que não se disse ao homem, adiciona: Nada ele ouve, isto é, nada ele entende. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça (Mt 13,9). Mas o que só a Deus é falado, compreende-se que o próprio Deus fala. Pelo qual disse: Mas o Espírito de Deus fala mistérios, isto é, coisas ocultas (1Cor 14,2). Porque não sereis vós que farereis, senão o Espírito de vosso Pai é que falará em vós. (Mt 10,20).

Em segundo lugar prova que a profecia é em honra de Deus e para utilidade dos próximos. Pelo qual disse: Porque quem profetiza, etc. (1Co 14,3), isto é, o que explica visões ou escrituras, lhes fala aos homens, quer dizer, ao entendimiento dos homens, e isto para edificação dos principiantes, e para exortação dos adiantados (Animais os covardes,1Ts 5,14. Ensinai e exortai,Tt 2,15), e para consolo dos aflitos.

Mas a edificação corresponde a uma disposição espiritual. Em quem também vós estais sendo juntamente edificados (Ef. 2,22). E a exortação é para induzir a boas ações, porque se a disposição é boa, boa será tão a ação. Estas coisas ensinam e exortam (Tt. 2,1,4). A consolação induz a paciência ante os males. Tudo quanto foi escrito, para nos ensinar se escreveu (Rm 15,4).

Pois bem, a estas três coisas induzem os proclamadores da Divina Escritura.

A segunda razão é esta: o que é útil tão somente para quem o faz é menor que aquilo que também a outros aproveita. É assim que o falar em línguas é somente para a utilidade de quem as fala, é ao invés o profetizar aproveita a outros.

Averigua esta razão, e primeiramente enquanto a sua primeira parte, para o qual disse: O que fala em línguas edifica-se a si mesmo (1Cor 14,4). (Dentro de mim meu coração me ardia, Sl. 38,4). Em segundo lugar enquanto a sua segunda parte, para o qual disse: Mas o que profetiza edifica, instruindo, a Igreja, isto é, aos fiéis. Edificados sobre o fundamento dos Apóstolos e dos Profetas (Ef. 2,20).

Lição 2: 1Co 14,5-12

Por exemplos, já das flautas, já dos homens, ensina que a profecia sobrepuja ao dom de línguas.

5. Desejo que faleis todos em línguas; prefiro, contudo, que profetizeis. Pois o que profetiza supera ao que fala em línguas, a não ser que este também interprete, para que a assembléia toda receba edificação.

6. E agora, irmãos, suponhamos que eu vá até vós falando-lhes em línguas: Em que lhes aproveitaria eu se minha palavra não vos traz nem revelação, nem ciência, nem profecia, nem ensinamento?

7. Assim sucede com as coisas inanimadas que dão vozes tais como a flauta ou a cítara. Si não dão distintamente os sons, como se conhecerá o que toca a flauta ou a cítara?

8. E se a trombeta não dá senão um som confuso, quem se preparará para a batalha?

9. Assim também vós: se ao falar não pronunciais palavras inteligíveis, como se entenderá 10. Há no mundo não sei quantas variedades de línguas, e nenhuma carece de sentido.

10. Há no mundo não sei quantas variedades de línguas, e nenhuma carece de sentido.

11. Mas se eu desconheço o valor dos sons, serei um bárbaro para o que me fala; e o que me fala, um bárbaro para mim.

12. Assim, pois, já que aspirais aos dons espirituais, procurai abundar neles para edificação da assembléia. O que dizes? É como se falásseis ao vento.

.Aqui o Apóstolo rechaça a objeção ao falso entendimento que pudesse haver acerca do que previamente explicamos: com efeito, alguns poderiam crer que por preferir o Apóstolo a profecia ao dom de línguas deveria desdenhar-se o dom de línguas. Pelo qual, para excluir tal coisa, disse: Desejo que faleis, etc.

Donde primeiramente se vê o que trata de insinuar; e logo dá a razão dele: O que profetiza supera... a não ser que, etc. Assim é que disse: Os digo, não obstante o que já disse acima, que não desejo que desdenheis o dom de línguas, pois quero que todos vós faleis em línguas; mas desejo que profetizeis. Quem me dera que todo o povo de Yawhé profetizasse. . ? (Ez 1 Ez 1,29) Ez 11, E o explica dizendo: mas supera, etc., como se dissera: desejo que mais bem profetizeis, porque o que profetiza supera, etc. E a razão disto é que às vezes alguns são movidos pelo Espírito Santo a falar algo místico que eles mesmos não entendem; e é assim como estes tem o dom de línguas. Mas às vezes não só falam em línguas senão que ademais interpretam o que dizem. Pelo qual adiciona o Apóstolo: A não ser que este também interprete. Porque o dom de línguas com sua interpretação é melhor que só a profecia; porque, como já se disse, a interpretação de algo elevado pertence à profecia. Assim é que quem fala e interpreta é profeta, pois tem tanto o dom de línguas como o da interpretação para edificação da Igreja de Deus; pelo qual disse o Apóstolo: para que toda assembléia receba edificação, ou seja, que não sozinho se entenda senão que também edifique a Igreja: Procuremos o que seja para mútua edificação (Rm 14,19). E: Que cada um agrade bem ao seu próximo para sua edificação (Rm 15,2).

E agora, irmãos, etc. Aqui prova com exemplos, e de três classes, que o dom da profecia supera o dom de línguas.

Primeiro com um exemplo tomado de si mesmo; logo mediante um tomado das coisas inanimadas: Assim sucede com os instrumentos inanimados, etc.; e por último com um tomado da diversidade de línguas dos homens: Há no mundo não sei quantas variedades de línguas, etc.

Enquanto a ele mesmo, argumenta desta maneira: É patente que eu não possuo menos que vós o dom de línguas; mas se somente lhes falar em línguas, sem interpretá-las, de nada aproveitariam. Logo tampouco vos aproveitais mutuamente. O disse com estas palavras: Suponhamos que eu vá até vós falando em línguas. O qual pode entender-se de duas maneiras, isto é, ou em línguas desconhecidas, ou a letra com qualquer sinais não entendidos. Em que vos aproveitaria se minha palavra não traz nem revelação? etc. E aqui devemos observar que estas quatro coisas, a saber, nem revelação, nem ciência, nem profecia, nem ensinamento, podem diferenciar-se de duas maneiras.

1º De um modo segundo o poder de quem seja. Pois devemos saber que a ilustração da mente mediante o conhecimento é de quatro coisas, porque o é das coisas divinas, e tal ilustração pertence ao dom de sabedoria. Mas o conhecimento das coisas divinas, como já se disse no capítulo 2, é a revelação, porque as coisas que são de Deus nada se conhece, etc. Pelo qual disse o Apóstolo nem revelação, pela qual é iluminada a mente para conhecer as coisas divinas.

Ou o conhecimento é de coisas terrenas, mas não de qualquer for, senão só das que são para edificação da fé, e tal conhecimento pertence ao dom da ciência, pelo qual disse: nem ciência, não de geometria, nem de astrologia, porque estas não tem a ver com a edificação da fé, senão a ciência das coisas santas. Lhe deu a ciência das coisas santas, etc. (Sb 10,10). Ou é conhecimento de coisas futuras, e este pertence ao dom da profecia, pelo qual disse: nem profecia. Interpreta-lhes sinais y os prodígios antes que ocorran, e a sucessão dos tempos e dos sinais (Sb 8,8). Mas é de notar-se que aqui não se toma a profecia em sentido geral, ou seja, conforme ao que se foi dito, senão de maneira particular tão somente enquanto é a manifestação de coisas futuras. E enquanto a isto define assim Cassiodoro: A profecia é a divina inspiração de coisas futuras para declarar a imutável verdade. Quero derramar minha doutrina como profecia, etc. (Sl 24,46). Ou é de ordem da moral, no qual pertence a instrução ou doutrina, pelo qual disse o Apóstolo: nem instrução. Com instrução instruindo (Rm 12,7). A boa instrução da graça (Pr 13,15).

2° De outro modo podem-se distinguir as diversas maneiras de adquirir o conhecimento. Com efeito, é de saber-se que todo conhecimento ou provém de um princípio sobrenatural, isto é, de Deus, ou de um natural, ou seja, da luz natural de nosso entendimento. Mas o primeiro pode ser de duas maneiras: ou infundindo-se a luz divina por súbita apreeensão, e assim teremos a revelação; ou se infunde sucessivamente, e assim é a profecia, pois não a tiveram subitamente os profetas, senão sucessivamente e por partes, como mostram suas profecias.

Mas se a instrução se adquire mediante um princípio natural, isto ocorre ou mediante estudo próprio, e assim pertenece a ciência; ou se recebe de outro, e assim pertence a doutrina. E assim sucede com coisas inanimadas, etc. Isto mesmo se mostra com exemplos tomados de coisas inanimadas, isto é, de instrumentos que parecem ter voz. E primeiramente por instrumentos de gozo; e em segundo por instrumentos de combate: E se a trombeta não dá senão um sonido, etc. Pois disse: não só pelo que já foi dito acima, senão também porquanto há coisas que carecendo de alma dão sons, é evidente que somente falar em línguas não aproveita aos demais. E assim sucede com coisas inanimadas que dão sons. Pelo contrário, a voz é um sonido que sai de uma boca animal, formado por órgãos naturais. Assim é que as coisas que carecem de alma não dão vozes.

Devemos dizer que ainda quando a voz não pertence senão a animais, contudo, se pode dizer, por certa semelhança, de certos instrumentos que tem certa consonância e melodia, pelo que faz menção deles, isto é da cítara, que ao tato dá sons, e da flauta, soprando. Portanto, se estas coisas dão sons confusos como se entenderão?

Com efeito, sendo que o homem mediante instrumentos deseja expressar algo, isto é, com algumas melodias, que se ordenam ou ao pranto ou ao gozo (Vós cantareis como na noite em que celebra a festa, com alegria de coração, como que ao som da flauta vai entrar no monte de Yahwéh,Is 30,29), ou também a sensualidade, não se poderia julgar com que finalidade se toca a flauta, ou com qual a cítara, se o som é confuso e obscuro.

Da mesma maneira, se o homem fala em línguas, e não as interpreta, é impossível saber o que quer dizer. Se não dá senão um som confuso, etc. Isso mesmo se vê pelos exemplos das coisas inanimadas, e dos instrumentos próprios para o combate. E esta semelhança se toma do capítulo 10 do livro dos Números. Ali se lê que o Senhor ordenou a Moisés que fizesse duas trombetas de prata para convocar o povo, para pôr em movimento os acampamentos e para o combate. Mas para cada uma destas finalidades teriam certo modo de tocar, pois de uma maneira era a voz para juntar-se na assembléia, outra era para mover o campamento, e outra quando lutavam. Pelo qual argumenta o Apóstolo que assim como se a trombeta não dá senão um som confuso, isto é, ininteligível, não se sabe se devem preparar para a guerra, assim também vós, se falais somente em línguas, sem uma clara exposição que interprete o dito, nada saberá do que é dito. Por trombeta se pode entender que se trata do pregador. Como trombeta clama a voz no grito, etc. (Is 58,1).

Porque não se pode saber o que se diz é que falareis ao vento, ou seja, inútilmente. E exerço o pugilismo não como dando golpes no vazio, etc. (1Cor 9,26). Há no mundo não sei quantas variedades de línguas, etc. Aqui toma o exemplo das diversas línguas que se falam. E acerca disto procede de três maneiras.

Primeiro mostra a diversidade das línguas; logo, a inutilidade de falar-se mutuamente em línguas estranhas: Mas se desconheço o valor dos sons, etc; e finalmente conclui com o que deseja: Assim pois, já que aspiramos aos dons espirituais, etc.

Com efeito, primeiramente disse: Muitas e diversas línguas há no mundo, e cada quem pode falar a que queira; mas se não fala uma determinada, não se entende. Pelo qual disse: há não sei quantas variedades, etc. Pode-se expor isto de duas maneras, porque pode continuar com o que precede, de modo que diga: Falareis ao vento; e há não sei quantas variedades, etc., como se dissera: ao vento, isto é, inutilmente falais em todas as línguas, porque falais sem entende-las, não obstante que para serem entendidas tem as significações próprias das vozes. Pois nada carece de voz.

Ou se pode pontuar desta maneira: Es como si ha-biaráis al viento. Pois tantos são os gêneros de línguas, isto é, de cada língua. Mas se desconheço, etc. Com isto mostra sua inutilidade. O disse com estas palabras: Se falasse todas as línguas. Mas se desconheço o valor dos sons, ou seja, a significação das vozes, serei um bárbaro para meu interlocutor.

R. - Eis que eu trago sobre vós uma nação de muito longe, nação cuja língua ignoras (Jr. 5,15).

Observe-se que segundo alguns são bárbaros aqueles cujo idioma discorda totalmente do latino. Embora outros dizem que todo estranho ou estranjeiro é um bárbaro para qualquer outro estranho quando não é entendido por ele. Mas isto não é assim, porque segundo Isidoro Barbaria é uma certa nação. Em Cristo não há bárbaro nem escravo, etc. (Cl. 3,2). Mas, segundo mais verdadeiramente se disse, bárbaros são propriamente aqueles que gozam de vigor corporal sendo deficientes no vigor da razão, e estão como na margem das leis e sem regime jurídico. E isto concorda com o que Aristóteles disse em sua Política. Consequentemente, quando o Apóstolo disse: assim como conclui o que pretende, isto se pode construir de duas maneiras. Primeiramente para certificar como se dissera: Tão bárbaro seria eu para vós se falasse sem significação nem interpretação, como bárbaros serieis vós mutuamente; pelo qual procurai abundar, etc., e isto porque aspiráis aos dons espirituais.

Ou de outro modo, dizendo-se tudo com claridade, como se dissera: Não sejais, pois, bárbaros; senão que, tal como eu procedo, posto que estais ansiosos das coisas do espirito, isto é, dos dons do Espírito Santo, pedí-los a Deus, para que abundeis. Na abundante justiça está a virtude máxima (Pr 15,5). Na qual justiça é edificar aos demais. Pedi e vos será dado; buscais e achareis; batei e vos será aberto (Mt 7,7).

Lição 3: 1Co 14,13-17

Tanto na oração privada como na pública se vê que a profecia é mais excelente que as línguas.

13. Portanto, o que fala em línguas peça o dom de interpretar.

14. Porque se oro em línguas, minha respiração ora, mas minha mente fica sem fruto.

15. Então que fazer? Orarei com a boca, mas orarei também com a mente. Salmodiarei com a boca, mas salmodiarei também com a mente.

16. Porque se não dá graças senão com palavras que exalas, quem suprirá aos simples? Como dirão amém a tu ação de graças se não sabem o que dizes?

17. Porque tu, certamente, bem que das graças, porém o outro não se edifica.

Já mostra acima o Apóstolo a excelência do dom da profecia sobre o dom das línguas, com razões tomadas da parte da exortação, e agora demonstra o mesmo com razões tomadas da parte da oração, pois, em efeito, estas duas coisas, a oração e a exortação, às exercitamos com a língua.

Para isto procede de duas maneiras. Primeiramente prova com razões a excelência da profecia sobre o dom das línguas; e em segundo lugar com exemplos, pelo qual disse: Dou graças a meu Deus, etc.

E enquanto ao primeiro procede também de dois modos. Em primeiro termo põe a necessidade da oração; e logo faz ver que na oração mais vale o dom da profecia que o dom das línguas. Porque se oro em línguas, etc.

Assim é que primeiro diz: Disse que o dom de línguas sem o dom da profecia carece de valor, e pelo mesmo, como o interpretar é próprio da profecia, que é mais excelente que aquele, o que fala em línguas desconhecidas ou estranhas, ou de ocultos mistérios, peça, é claro que a Deus, o dom de interpretar, ou seja, que lhe seja dada a graça de interpretar. Orai para que Deus nos abra uma porta (Colos. 4,3).

A Glosa explica o pedir de outra maneira. Com efeito, orar ou pedir se entende de duas maneiras: ou como suplicar a Deus, ou como persuadir, como se dissera: O que fala em línguas, peça, ore, ou seja, de tal maneira persuada que interprete, e neste sentido toma aqui a Glosa o orar, em todo o capítulo.

Mas não é esta a intenção do Apóstolo, senão que seja uma insistente súplica a Deus. Porque se oro, etc. Aqui mostra que ao orar mais vale a profecia que o dom das línguas, e isto de duas maneiras. Primeiramente por razão tomada da parte dele mesmo que ora; em segundo lugar, por razão tomada da parte do que ouve: Porque se não bendizes, etc.

Enquanto ao primeiro, na ocasião, procede de duas maneiras. Primeiramente dá a razão do que quer demonstrar; e logo rechaça a objeção: Então, que fazer? Sobre o primeiro é de saber-se que de duas maneiras é a oração. Teremos a oração privada quando um ora, dentro de si mesmo e por si mesmo. E a oração pública quando se ora frente ao povo e pelos demais; e em ambas as orações pode usar-se do dom das línguas e do dom da profecia. E se trata de demonstrar que em uma e outra oração vale mais o dom da profecia que o dom das línguas.

E primeiramente na oração privada dizendo que se ali há um simples ou incrédulo, quem faz sua oração salmodiando ou dizendo Pai Nosso, mas não se compreende o que diz, esse tal ora em línguas e o mesmo lhe dá orar com palavras que o Espírito Santo lhe concede e até com palavras de outros; mas se é outro o que ora e entende o que diz, este ora e profetiza. E é claro que mais ganha o que ora e entende, do que aquele que somente ora com a língua, ou seja, o que não entende o que diz.

Porque quem entende se renova em sua mente e em seu afeto; e entretanto a mente do que não entende permanece sem fruto de renovação. Daqui que como é melhor o renovar-se na mente e afeto do que unicamente no afeto, resulta claro que na oração mais vale o dom da profecia do que somente o dom de línguas. Isto o expressa dizendo: Digo que peça o dom de interpretar. Porque se oro em línguas, ou seja, se para orar uso o dom de línguas, de modo que digo algo que não entendo, então meu espírito, isto é, o Espírito Santo que me é dado, pede que me incline e mova a pedir. E com tal oração não deixo de ganhar, porque o mesmo fato de que me mova pelo Espírito Santo é meritório para mim. Pois nós não sabemos pedir o que convém; pois o próprio Espírito Santo nos faz suplicar (Rm 8,26). Ou também: Espírito meu, meu espírito, isto é, minha razão, me indica que fale coisas que são para o bem, ou com palavras próprias minhas, ou de outros santos. Ou também: Espírito meu, meu espírito, isto é, a faculdade imaginativa, pede, enquanto vozes ou semelhanças das coisas corporais são tão somente na imaginação sem aquilo pelo qual se entendam pelo entendimento; e por isso adiciona: mas minha mente, isto é, meu entendimento, fica sem fruto, porque não entende. Pelo que na oração é melhor a profecia ou interpretação do que o dom de línguas. Contudo, e quando alguém ora e não entende o que disse, se fica sem o fruto da oração?

Devemos dizer que é duplo o fruto da oração. Um fruto é o mérito que se resulta ao homem; o outro fruto é a consolação espiritual e a devoção que se alcança pela oração. Agora bem, enquanto o fruto da devoção espiritual se priva quem não atende ao que ora ou que não o entende; mas enquanto ao fruto do mérito não se pode dizer que se prive, porque se assim fosse muitas orações ficariam sem mérito, pois com dificuldade pode dizer o homem um Pai Nosso sem que seja exigida a mente pelas demais coisas. Pelo qual devemos dizer que quando o que ora se distrai às vezes do que disse, ou quando alguém em uma obra meritória não pensa continuamente em cada um de seus atos que faz por Deus, não perde a razão do mérito. E assim é porque em todos os atos meritórios que se ordenam a um fim reto não se requer que a intenção do agente se una ao fim em cada ato, senão que a primeira energia que move a intenção permaneça na obra inteira ainda quando as vezes em algo particular se distraia; e essa primeira energia faz meritória toda a obra a não ser que se interrompa por uma afeição contrária que do fim predito leve a um fim contrário.

Mas a atenção é tripla. Uma é a respeito das palavras que diz o homem, e esta às vezes danifica enquanto impede a devoção; outra é com relação ao sentido das palavras, e esta danifica, embora não é muito nociva; e a terceira é com relação ao fim, e esta é a melhor e quase necessária.

Todavia, estas palavras do Apóstolo: a mente fica-se sem fruto se entendem do fruto de renovação. Então que fazer? etc. Porque pode alguém dizer: Se orar com a língua é algo sem fruto da mente e todavia a boca ora, porque, em conseqüência, não há que orar com a boca?

O Apóstolo o resolve dizendo que se deve orar das duas maneiras, verbal e mentalmente, porque o homem deve servir a Deus com tudo o que tem de Deus; e como de Deus tem respiração e mente, pelo mesmo de uma e outra maneira deve orar. Com todo seu coração louva ao Senhor, etc. (Sl 47,10). Pelo qual disse: Orarei com a boca, mas orarei também com a mente; salmodiarei com a boca, mas, etc.

E disse orar e salmodiar, porque a oração ou é uma deprecação, e a isto se refere o orar, ou é para louvar a Deus, e a isto se refere o salmodiar. Sobre estas duas coisas disse São Tiago (Tg 5,13): Sofre algum entre vós? Que ore. Está algum alegre? Que cante salmos. E nos Salmos 91,2: Bom é salmodiar, etc. Assim é que orará verbalmente, isto é, com a imaginação, e com sua mente, isto é, com a vontade. Porque se não louvas senão com respiração, etc. Isto mostra em segundo lugar que o dom da profecia vale mais que o dom de línguas, ainda na oração pública, na qual se dá quando o sacerdote ora publicamente, e às vezes diz coisas que não entende, e às vezes coisas que entende. E sobre isto procede o Apóstolo de três maneiras.

Primeiramente da razão; logo já põe a vista: Como dirão amém? etc.; e por último prova o que havia suposto: Se não sabem o que dizes.

Em efeito, disse assim: Disse que o dom da profecia na oração privada vale mais, porque se não louvas, etc., e também na pública, porque se não louvas senão com a respiração, isto é, em uma língua que não se entenda, ou com a imaginação, e movido pelo Espírito Santo, quem suprirá aos simples? Simples é propriamente aquele que não conhece senão a língua materna: Como se dissera: Quem dirá aquilo que deve dizer ali o simples? Ou seja: Amém. E por isso disse: Como dirá amém a tua ação de graças? O que a Glosa explica assim: Como se porá em harmonia com a ação de graças feita por ti na representação da Igreja? Quem seja bendito na terra será bendito em Deus. Amém (Is 65,16). Amém é o mesmo que faça-se, ou assim seja; como se dissera: Se não entende o que dizes, como assentira ao que dizes? Pode alguém assentir, ainda sem entender, mas tão somente em geral, não em concreto ou em especial, porque não pode entender que coisas boas dizes nem o que é que tão só bendizes. Mas porque não se hão de dar as bendições na língua vulgar para que se entendam pelo povo e se adapte estas melhor a elas?

Devemos dizer que isto assim foi felizmente na Igreja primitiva, mas já estando instruídos os fiéis e sabendo o que é que ouvem no oficio comum, se dizem os louvores em latim.

Consequentemente, prova o Apóstolo porque não se pode dizer Amém quando disse: Porque, certamente, bem que tu dá graças, isto é, embora tu dês boas graças à Deus enquanto entendes; mas outros, que ouvem e não entendem, não se edificam, enquanto não entendem em especial, embora em geral entendam e se edifiquem. Não saia de vossa boca palavra danosa, senão a que seja conveniente para a edificação da fé (Ef 4,29). E pelo mesmo é melhor que não somente com a língua se louve, senão que também se interprete e se ponha à vista, embora tu que da graças, bem o faças.

Lição 4: 1Co 14,18-22

Dá graças pelo dom de línguas que Deus lhe deu, propondo-se como exemplo.

18. Graças dou à Deus porque falo as línguas de todos de vós.

19. Contudo prefiro falar na Igreja cinco palavras com sentido para instruir aos demais do que dez mil palavras em línguas.

20. Irmãos, não sejais crianças nos juízos; sede crianças enquanto à malícia, mas maduros nos juízos.

21. Está escrito na Lei: Falará a este povo em línguas estranhas e por lábios estrangeiros, e nem ainda assim me escutarão, diz o Senhor.

22. Assim pois, as línguas servem de sinal não para os crentes, mas senão para os infiéis; ao invés, a profecia, não para os infiéis, senão para os crentes.

Aqui mostra o Apóstolo a excelência do dom da profecia a respeito do dom de línguas por razões tomadas da parte dele mesmo. E para isto procede de duas maneiras.

Primeiramente dá graças pelo dom de línguas que Deus lhe deu; e logo lhes propõe o mesmo como exemplo: Mas na Igreja prefiro, etc. Assim é que disse: Graças dou, etc., como se dissera: Não é que desprezo o dom de línguas quando digo que o dom da profecia seja mais excelente, senão que deve te-lo por muito apreço. Pelo qual eu também dou graças a Deos, etc. Pois deve-se dar graças de tudo. Em tudo dai gracias, etc. (1Filem 5,18). E: Graças dou a Deus, etc.. Como se dissera: não menosprezo o dom de línguas como se dele caressese, pois eu também o tenho, pelo qual disse: graças dou a Deus. E para que não se creia que todos falavam uma só língua, disse: porque falo todas as línguas de vós (Falavam os Apóstolos em várias línguas, Atos 2,6). Mas na Igreja, etc. Aqui se põe ele mesmo como exemplo, como se dissera: Se eu tenho também o dom de línguas como vós, deveis fazer o que eu faço. E eu quero, isto é, prefiro, falar na Igreja cinco palavras, ou seja, muito poucas, porém com minha percepção, e dizer, com minha inteligência, de modo que eu entenda e seja entendido, e assim instrua aos demais, que não dez mil palavras, ou seja, uma multidão de palavras em línguas, no qual, como quiser que seja, não é falar ao entendimento, como já ficou exposto acima.

Alguns opinam que o Apóstolo disse cinco porque parece querer expressar que prefere dizer uma só oração para o entendimento do que muitas sem inteligência. Pois a oração, segundo os gramáticos, para fazer sentido perfeito deve constar de cinco partes, a saber: sujeito, predicado, ligação verbal, determinação do sujeito e determinação do predicado.

A outros parece melhor que como falar com a inteligência é para ensinar aos demais, exige cinco coisas porque o douto deve ensinar cinco coisas, a saber: o que se deve crer (Assim tem de ensinar e exortar, etc. Tito 2,15); o que se deve obrar (Ide, pois... ensinai-os a guardar tudo o que Eu os tenho mandado,Mt 28,19-20); o que se deve evitar, isto é, os pecados (Como da serpente foge do pecado,Sl 21,2 Revela meu povo suas iniquidades,Is 58,1); o que se deve esperar, isto é, a dádiva eterna (Desta -salvação investigaram e indagaram os profetas, que profetizaram sobre a graça destinada a vós,1 Pedro 1,10); o que se deve temer, isto é, as penas eternas (Idê, malditos, ao fogo eterno, etc.Mt 25,41).

Irmãos, não sejais crianças, etc. Aqui mostra a excelência do dom da profecia sobre o dom de línguas, com razões tomadas da parte dos infiéis. E para isto procede de duas maneiras. Primeiro desperta a atenção, e os torna atentos; e logo argumenta a propósito: O que está escrito na lei?

Acerca do primeiro vemos que o Apóstolo tira-lhes o manto da desculpa daqueles que ensinam coisas vãs e superficiais querendo fazer-se pasar por inocentes, sem preocupar-se portanto de penetrar ao fundo conforme a verdad das coisas, no qual não alcançam, alegando para isto as palavras do Senhor: Se não mudardes e vos fazeis como crianças, não entrareis no Reino dos Ceús (Mt 1 Mt 8,3). Tal coisa exclui o Apóstolo dizendo: Não sejais crianças nos juizos, ou seja, não quereis falar e ensinar coisas infantis, inúteis e tolas. Quando eu era criança, falava como criança, etc. (1Cor 13,1 1Cor 1). Mas como deveis fazê-los como crianças? Com o afeto, não com o entendimento. Pelo qual disse: Mas enquanto a malícia. Porque já sabemos que as crianças não projetam coisas más, e é assim como debemos fazer-nos crianças; pelo qual disse: sede crianças enquanto à malícia. Mas falta-lhes pensar em coisas boas, e não é assim que devemos ser crianças, mas senão varões bem perfeitos, pelo qual adiciona: porém maduros nos juizos, isto é, enquanto ao distinguir os bons e os maus, sede perfeitos. Por isso disse em Hebreus 5,14: O manjar sólido é para os perfeitos ou adultos. Assim é que não se louva em vós a simplicidade que se oponha à prudencia, senão a que se opõe ao engano. Pelo qual disse o Senhor (Mt 10,16): Sede prudentes como a serpente. Quero que sejais engenhosos para o bem e inocentes para o mal (Rm 16,19). Pelo qual, quando disse: Está escrito na Lei, argumenta a propósito, e devemos saber que sua argumentação, como se vê pela Glosa, inclue muitas aplicações; mas segundo a intenção do Apóstolo não parece que neste lugar atenda senão a uma razão. E a razão que dá para provar que o dom da profecia é mais excelente que o dom de línguas é o seguinte: Tudo o que vale mais para aquilo ao que outra coisa principalmente se ordena é melhor que esta outra ordenada ao dito; e o dom da profecia, como o dom de línguas, se ordena à conversão dos infiéis; porém mais eficazes são para isto as profecias que o dom de línguas; logo a profecia é melhor.

Mas enquanto a esta razão procede o Apóstolo de duas maneiras. Primeiro mostra a que se ordena o dom de línguas; e a que se ordena o dom da profecia; em segundo lugar, que vale mais o dom da profecia: Se, pois, se reúne toda a assembléia, etc. (1Cor 14,23). Duas coisas faz acerca do primero. Desde logo faz admitir a autoridade. E logo, apoiado na autoridade, argumenta à propósito: Assím pois, as línguas, etc.

Pelo que vê ao primeiro se deve saber que estas palavras: Que está escrito na Lei? Se podem ler ou interrogativamente, como se dissera: não deveis faze-los crianças nos juízos, senão adultos, e isto é ver e connhecer a lei. Em consequência, se sois perfeitos nos juízos, conheceis a lei, e na lei o que está escrito sobre as línguas: que geralmente são inúteis para aquilo para o qual se ordena, porque ainda quando se fale em diversas línguas, por exemplo, ao povo judeu, contudo não ouve o homem, etc.

Pode-se ler também indulgentemente: Está escrito na Lei. Como se dissera: Não vos agiteis como crianças desejando algo sem discernir se é bom ou melhor o que tratais de alcançar e o prefirais a um bem superior, senão sede perfeitos nos juízos, discerni entre os bens e os bens maiores, para que assim trateis de alcançá-los.

E é assim, se pensais o que está escrito na Lei: Em línguas estranhas falará, etc. (Assim é que meditando o juízo é perfeito,Sb 6,16). E diz na Lei, tomando a Lei estritamente pelos cinco livros de Moisés tão somente, como se toma em Luc. 24,44: É necessário que se cumpra tudo o que está escrito acerca de mim na Lei de Moisés, etc., senão por todo o Antigo Testamento, como se toma em Jo 15,25: Para que se cumpra o que está escrito em sua lei: odiaram-me sem motivo. E isto mesmo está escrito no Salmo 119. Contudo, este sentido está tomado de Is 28,11, donde nosso texto diz: Sim, com palavras estranhas e com língua estrangeira se falará a este povo.

Assim é que está escrito que em línguas estranhas, isto é, em diversos gêneros de línguas, e por lábios estrangeiros, ou seja, em diversos idiomas e modos de pronunciar, falarão a este povo, ao dizer, aos judeus, porque este sinal se deu especialmente para a conversão do povo judeu: Nem assim escutaram, porque com sinais manifestos não creram. Endureceu o coração deste povo, etc. (Is 6,10).

Mas, para que Deus lhes deu sinais, se não haviam de converter-se? Sobre isto há duas razões. Uma delas é que ainda quando não todos se converteriam, contudo alguns sim porque não rechaça o Senhor ao seu povo. A outra razão é que mais justamente se manifestaria a condenação deles sendo mais manifesta sua iniquidade. Se eu tivesse vindo e não tivesse falado, etc. (Jo 15,22). Pelo tanto, quando disse: Assim, pois, as línguas, etc., partindo da autoridade assentada argumenta à propósito, como se dissera: que o dom de línguas não foi dado para que os fiéis creiam é claro, pelo fato de que já creêm (Já não cremos por tuas palavras, etc., Juan 4,42), senão para que os infiéis se convertam.

Mas na Glosa vemos neste lugar duas exposições de Santo Ambrósio que não são literais; das quais uma é a seguinte: Assim como no Antigo Testamento falei ao povo judeu em línguas, isto é, por figuras e com lábios, prometendo bens temporais, assim agora, no Novo Testamento, falo a este povo em outras línguas, isto é, aberta e claramente, e com outros lábios, ou seja, espirituais, embora tampouco igualmente ouçam enquanto a multiplicidade deles. Assim, pois, as línguas se dão não para os infiéis senão para os fiéis, para fazer patente a infidelidade daqueles.

A outra exposição é esta: Em línguas estranhas, isto é, obscura e parabolicamente lhes falará para que os indignos não escutem, isto é, não entendam.

Pelo tanto é patente que a profecia se ordena a instrução dos fiéis, que já creêm. E pelo mesmo as profecias se dão não para os infiéis, que não creêm (Senhor, quem deu crédito a nossa notícia?,Is 53,1), senão para os fiéis, para que creiam e se instruam. Filho do homem, eu te fui dado por centinela na Casa de Israel (Ez 3,17). Quando não há profecia o povo se perde (Pr 29,18).

Lição 5: 1Co 14,23-26

Mostra os inconvenientes que se seguem, enquanto aos infiéis, do dom de línguas e o bem do dom da profecia enquanto a eles mesmos.

23. Se pois se reúne toda a Igreja ou assembléia e todos falam em línguas e entram nela ignorantes ou infiéis, não dirão que estais loucos?

24. Pelo contrário, se todos profetizam e entra um infiel ou um ignorante, será convencido por todos, julgado por todos.

25. Os segredos de seu coração ficarão descobertos e, prostrado rosto em terra, adorará a Deus confessando que verdadeiramente Deus está entre vós.

26. O que concluir, pois, irmãos? Quando estiverdes reunidos, cada um de vós pode ter um salmo, uma instrução, um apocalipse, um discurso em línguas, uma interpretação; mas que tudo seja para edificação.

Segundo a Glosa aqui começa outra razão na prova das teses. Mas, conforme já dito, não foi dada senão uma única razão e em certo modo não foi manifestado senão a metade dessa mesma razão, isto é, que a profecia é mais eficaz para aquilo pelo que especialmente se ordena o dom das línguas. Daqui que para isto procede o Apóstolo de duas maneiras:

Primeiramente mostra os inconvenientes que do dom de línguas se seguem para os infiéis: Se todos falam em línguas... Logo mostra o bem, que do dom de profecia se segue ainda para os infiéis: Pelo contrário, se todos profetizam... É inconveniente que do dom de línguas sem a profecia se segue mesmo para os infiéis que tenham por loucos aqueles que falam somente em línguas, não obstante que o dom de línguas se ordena para a conversão dos infiéis, como já se viu, e para isto disse assim: Pelo contrário, se todos profetizam.

Como se dissera: Isto demonstra que as línguas não se devem preferir às profecias, porque: Se reúne toda a Igreja, a dizer, todos os fiéis, não só corporalmente senão com a mente (A multidão dos crentes não tem senão um só coração e uma só alma, Atos 4,32), e todos, já reunidos, falam em línguas, ou seja, em idiomas estranhos, ou falam coisas desconhecidas e obscuras, e quando falam assim confusamente entra algum ignorante, isto é, alguém que não entende senão seu idioma, ou um infiél, por quem as línguas foram dadas, não dirão que estais loucos? Porque o que não se entende se toma por loucura. Com efeito, entende-se a língua, as coisas que se diz de nenhuma maneira são ocultas; porém o mal está em que não se expliquem, porque por falar coisas ocultas podem pensar de vós o mesmo que pensam dos gentios: que o que fazem em seu próprio rito o ocultavam por sua mesma torpeza. O qual é também uma certa loucura.

Objeção: Enquanto aos ignorantes é o mesmo falar em línguas que o falar em idioma culto; é assim que na Igreja todos falam em idioma culto, porque tudo se diz em latim; logo parece que também isto é uma loucura.

Respondo: Pelo mesmo era uma loucura na Igreja primitiva, porque eram rudes e ignorantes em matéria de rito eclesiástico, posto que não sabiam o que se fazia ali, se não lhes explicasse. Mas na medida conveniente todos estão instruídos, pelo qual, ainda quando tudo se diz em latim, todos sabem, contudo o que se faz na Igreja.

Consequentemente, quando disse: Pelo contrário, se todos profetizam, mostra que segue o bem do dom da profecia. E para isto procede de três maneiras.

Primeiramente mostra o que segue, enquanto aos infiéis, pelo bem da profeicia; logo, mostra como segue isso: os segredos de seu coração, etc.; e em terceiro lugar, adiciona que efeitos provêm dele: E, prostrado rosto na terra, etc.

Disse, pois: Consta que mediante o dom de línguas não se convence os infiéis. Pelo contrário, ou seja, mas sim aqueles que juntos profetizam, isto é, falam ao entendimento de todos, ou explicam as Escrituras, ou ainda interpretam as revelações que tem recebido; isto é, se todos, mas não simultaneamente, senão um em seguida do outro assim profetizam; e entra, isto é, na Igreja, na assembléia, algum ignorante, ou seja, quem não tenha mais que a língua materna, o bem que dele segue é que será convencido de algum erro que lhe é mostrado (Logo que me mostrasse me envergonhei, Jer 3 1,19), julgado por todos os que profetizam, como se dissera que se mostra avergonhado de seus maus costumes e de seus vícios.

O homem espiritual, isto é, o mestre, o julga todo, etc. (1Co 2,15). Para estas duas coisas, com efeito, é a profecia: para confirmação da fé e para correção dos costumes. E de que maneira vem este bem do dom da profecia o adiciona ao dizer: Os segredos de seu coração. O qual se pode entender de três maneiras.

Um modo consiste, literalmente, em que alguns na Igreja primitiva tiveram o dom de saber os segredos dos corações e os pecados dos homens. Pelo qual lê-se que Pedro castigou Ananias por fraude no preço do campo (At 5,4-5). E por isto se lê: os segredos de seu coração, etc. Como se dissera: se convence porque os segredos, isto é, seus pecados secretos ficam descobertos por aqueles que os revelam.

Outro modo ocorre quando alguém na pregação toca muitas coisas que os homens levam em seu coração, como se vê nos livros de São Gregório, de onde cada um ordinariamente pode encontrar todos os movimentos de seu coração. E conforme isto se lê: Os segredos do coração. Como se dissera: ficam convencidos porque os segredos de seu coração, isto é, os que levam no coração (Assim como nas águas se reflete o rosto de quem as olha, assim se manifestam aos prudentes os corações dos homens, Pr 27,19), são manifestados, ou seja, são palpados por eles.

Ocorre outro modo, porque às vezes se diz que é segredo do coração aquilo que um duvida e não pode por si mesmo certificar. E conforme a isto se lê: Os segredos do seu coração, isto é, aquelas coisas que duvida em seu coração e que não creia que se manifestem, pois indo à Igreja se fazem frequentemente manifestas, como de si mesmo disse Santo Agostinho (Conf., Liv. 10, cap. 35): que foi a igreja unicamente pelo canto, e contudo ali se revelavam muitas das coisas sobre as quais duvidava e pelas quais não houvera ido. E dele seguia o salutável temor, pois completamente vencido temia a Deus. E o Apóstolo disse isto assim: E prostrado rosto em terra, isto é, tão vencido ficava, manifestados os segredos de seu coração, que prostrado rosto em terra adorava a Deus (E prostrando-se adoraram,Mt 2,2), em sinal de santo temor. Dos réprobos se lê, ao invés, que caem para trás. A senda dos ímpios é tenebrosa e não sabem donde se precipitam (Pr 4,19). Mas o eleito cai rosto em terra porque sabe donde se prostra e que é em sinal de santo temor. Prorromperam em gritos de jubilo e cairam rosto em terra (Levit. 9,24 e Mt 2,2). Diante cairão em terra os etíopes (Sl 71,9). E não só mostrara santo temor de Deus, senão também à Igreja, confessando, disse el Apóstolo, que verdadeiramente Deus está em vós, os que profetizais na Igreja. Queremos ir convosco, porque temos ouvido dizer que Deus está convosco (Zc. 8,23).

Está claro, portanto, que o dom de profecia é mais útil enquanto aos infiéis.

Que concluir, pois, irmãos? Aqui os instrui sobre o uso dos ditos dons. E para isto procede de duas maneiras.

Primeiramente mostra como se devem portar no uso destes dons; e logo conclui com seu principal propósito: Portanto, irmãos desejai com emulação o profetizar, etc.

E para o primeiro procede de duas maneiras. Primeiramente ensina como se devem portar no uso dos ditos dons; e logo expressa sua importância.

Enquanto ao primeiro três coisas faz. Em primeiro lugar mostra em geral como se deve mostrar respeito a todos os dons; em segundo lugar, como terão de se portar quanto ao dom de línguas: Se alguém fala em línguas, etc.; em terceiro lugar lhes disse como devem portar-se quanto ao dom da profecia: Profetizem dois ou três, etc.

Disse, pois: profetizar é melhor que falar em línguas. Que concluir, pois, irmãos? Isto é o que deveis fazer. Porque quando vos reunis se vê que um só não tem todos os dons; e portanto nenhum de vós deve lançar mão de todos os dons, senão daquele que mais especialmente foi recebido de Deus e que seja o melhor para a edificação, Porque cada um de vós tem algum dom especial: algum tem um Salmo, isto é, um cântico em louvor do nome de Deus, ou explica os Salmos. Pelas alturas conduz meus passos, etc. (Habac. 3,19). Outro tem instrução: prega para instrução dos costumes ou para explicar um sentido espiritual. Por sua doutrina se dá a conhecer o varão (Pr 12,8). Outro tem um Apocalipse, isto é, uma revelação, ou em sonho ou em alguma visão. Existe um Deus no céu que revela os mistérios, etc. (Dn 2,28). Outro tem um discurso em línguas, isto é, o dom de línguas ou de ler as profecias. E começaram a falar em outras línguas (At 2,4). Outro, uma interpretação. A outro a interpretação das línguas (1Cor 12,10).

Estas coisas se hierarquizam assim: ou são naturais ou vem só de Deus. Se procedem somente do meio natural, ou são para glória de Deus, pelo qual se disse: Tem um Salmo, ou é para a instrução do próximo, pelo qual disse: Tem uma instrução. Se provém unicamente de Deus, são de duas maneiras: ou são algo oculto interiormente, pelo qual disse: tem um Apocalipse, ou são coisas ocultas exteriormente, pelo qual disse: tem um discurso em línguas. E para a manifestação de uma e outra coisa é uma terceira, isto é, uma interpretação.

E se deve proceder de modo que tudo seja para a edificação. Que cada um de vós trate de agradar a seu próximo para o bem, buscando sua edificação (Rm 15,2).

Lição 6: 1Co 14,27-33

Ensina como devem usar do dom de línguas e quando não se há de usar.

27. Fala-se em línguas, que falem dois, ou no máximo três, e por turno; e que haja um intérprete.

28. Mas se não há quem interprete, guarde-se silêncio na assembléia; fale cada qual consigo mesmo e com Deus.

29. Quanto aos profetas, falem dois ou três, e os demais julguem.

30. Se algum outro assistente tiver uma revelação, cale-se o primeiro.

31. Pois podeis profetizar todos por turno para que todos aprendam e se animem.

32. E os espíritos dos profetas estão submetidos aos profetas.

33. Pois Deus não é um Deus de desordem, senão de paz, como ensino em todas as igrejas dos santos.

Aqui lhes ensina o Apóstolo como devem proceder para o uso do dom de línguas; e para isto faz duas coisas.

Primeiro mostra de que maneira se deve usar do dom de línguas; e logo, quando devem deixar de usá-lo: Se não há quem interprete. Disse, pois, primeiramente que o modo de usar do dom de línguas deve ser de tal maneira entre vós, que se fala em línguas, ou seja, sobre visões, ou sonhos, tal discurso não se faça por muitos, de modo que o emprego do tempo nas línguas não deixe lugar aos profetas, e se gere a confusão. Senão que falem dois, e se for necessário três, de modo que seja suficiente com três. Por declaração de dois ou três (Dt 17,6). E é de notar-se que este costume é conservado até agora na Igreja. Porque lições, e epístolas e evangelhos temos no lugar das línguas, e por isso na Missa falam dois, pois só por dois se dizem as coisas que pertencem ao dom de línguas, isto é, epístola e evangelho. Os Matinais (vésperas) constam de muitas partes, ou seja, de três lições ditas no Noturno. Em efeito, antigamente os Noturnos se diziam separados conforme as três vigilias da noite; mas agora se dizem em uma só vez. Assim é que não somente se deve guardar a ordem enquanto ao número dos que falam, senão também quanto ao modo, e isto disse assim São Paulo: e por turno, isto é, que os que falem se sucedam alternativamente, ou seja, que um fale depois do outro. Ou: por partes, isto é, por incisos, de modo que se diga uma parte da visão, ou da instrução, e se explique, e logo outra e esta seja explicada, e assim sucesivamente. E deste modo acostumaram guardar-lo os anunciadores quando anunciam interpretando para homens de língua estranha, pelo qual disse: e que há um intérprete.

Consequentemente, quando disse: Mas se não há quem interprete, etc., ensina quando não se deve usar das línguas dizendo que se deve falar por partes e que haja um que interprete. Porque se não há quem interprete, que quem tiver o dom de línguas guarde silêncio na assembléia, isto é, que não fale nem anuncie as pessoas na língua desconhecida, pois não será entendido por ninguém, e fale consigo mesmo, porque ele mesmo se entende, mas isto em silêncio, orando ou meditando. Falará na amargura de minha alma. Lhe dirá a Deus, etc. (Jó 10,1-2).

Quanto aos profetas, falem dois ou três, etc. Aqui ordena como devem portar-se a respeito do uso da profecia. Para isto, primeiramente ensina de que maneira devem usar desse dom, tanto quanto ao número como quanto à ordem; e em segundo lugar disse a quem é proibido o uso da profecia: As mulheres calem-se nas assembléias.

Enquanto ao primeiro procede de três maneiras. Primeiramente ensina a ordem de usar do dom da profecia; logo, dá sua razão: Pois podeis profetizar todos, etc.; e em terceiro lugar rechaça a objeção: os espíritos dos profetas estão submetidos aos profetas.

Em relação com o primeiro, primeiramente determina o número daqueles que hão de usar do dito dom; e logo, ensina o modo e a ordem de usar dele: Se algum outro assistente, etc.

Acerca do primeiro devemos saber que o uso da profecia conforme ao que aqui parece que entende o Apóstolo é dizer ao povo umas palavras de exortação explicando as Sagradas Escrituras; e como na Igreja primitiva haviam muitos que recebiam de Deus este dom, e ainda não se haviam multiplicado os fiéis, para que não houvesse nem confusão nem cansaço, quer o Apóstolo que não todos os que sabem explicar as profecias e a Sagrada Escritura profetizem, senão alguns poucos e determinados, no qual disse assim: Enquanto os profetas, etc. Como se dissera: Não quero que todos os que se reúnem, senão tão só dois, ou três no máximo, na medida que exige esta necessidade de falar, falem, isto é, exortem. E isto concorda também com o que já dizia a Escritura: Por declaração de dois ou três (Dt 17, o). E os demais, ou seja, os que não devem falar, julguem aquilo que foi exposto, se foi bem ou mal dito, aprovando o bem dito, e fazendo que se corrija o mal dito. O homem espiritual julga tudo (1Cor 2,15).

No uso desse dom deve-se guardar também a regra de que se algum outro dos assistentes que se calavam e julgavam revelar algo melhor do que se apresenta e exorta primeiro, então este que está de pé deve sentar-se e aquele a quem algo melhor foi revelado deve levantar-se e exortar. Isto disse o Apóstolo: Se algum outro assistente tem uma revelação, se entende que pelo Espírito Santo, o primeiro que se levantou cale-se e ceda o lugar aquele (Estimando mais em cada um aos demais,Rm 12,10).

E a razão é que desta maneira podeis sucessivamente profetizar um por um, isto é, todos, e assim todos, ou seja os maiores, ensinam, e todos, ou seja os menores, sejam exortados (Que atenda o sábio, etc. Pr 1,5).

E se alguém diz: oh! Apóstolo: Eu não posso calar quando outro profetiza, ou ceder e retirar-me havendo já começado, porque não posso silenciar o Espírito que fala em mim segundo aquilo de Jó 4,2: Quem pode conter suas palavras? Contesta o Apóstolo dizendo: Os espiritos dos profetas estão submetidos aos profetas. Como se dissera: Muito bem podes calar ou sentar-se, porque os espiritos dos profetas, isto é, os que dão as profecias – e os põe no plural pelas muitas revelações que são inspiradas- estão submetidos aos profetas, por certo, enquanto ao conhecimento, porque, como disse São Gregório (Moral., lib. 2, c. 14), nem sempre atua nos profetas o Espírito de profecia. De modo que não é um hábito como a ciência. Segue-se pelo tanto daqui que ainda enquanto ao conhecimento lhes está sujeito, e podem usar dele quando quiserem, ou não usá-lo; porque é força certa o impulso de Deus, que ilumina e toca os corações dos profetas; mas não conhecem senão quando assim são tocados. Logo desta maneira não lhe está sujeito, nem se entende assim a palavra do Apóstolo, pois os espiritos dos profetas estão sujeitos aos profetas enquanto à elocução, porque quando querem podem muito bem dizer as coisas que se revelam a eles, e podem não dizê-las.

Assim é que não vale o pretexto de que te impulsiona o Espírito sem que possa calar. E que isto seja a verdade o prova dizendo: Pois não é um Deus de dissenção, etc. E dá dele a razão. Jamais impulsiona Deus para aquilo que resulte rixa ou dissensão, porque não é um Deus de dissensão senão de paz; e se o Espírito de profecia impulsiona os homens a falar, seria então causa de dissensão, porque assim sempre estariam querendo falar, e não ensinar, nem calar quando outro fala, para turbação dos demais. Logo o Espírito Santo não impulsiona os homens a falar. E o Deus da paz e do amor estará convosco (1Cor 13,2).

Contudo, como, todavia poderia objetar-se que aquilo não ocorreria porque somente aos Coríntios mandava o Apóstolo estas coisas e não às demais Igrejas, pelo que até como algo molesto poderia ser considerado, agrega que isto ensina não somente a eles senão também em todas as Igrejas; e com efeito disse: Como ensino em todas as Igrejas dos Santos sobre o uso das línguas e da profecia. Já disse acima: Que tenhais todos um mesmo sentir (1Cor 1,10).

Notas do TC

(1) O presente texto que apresentamos aos nossos leitores é parte de um belíssimo e extraordinário comentário da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios feito pelo mais Doutor dos Santos e o mais Santo dos Doutores da Igreja, isto é, de Santo Tomás de Aquino.

A tradução para a língua portuguesa foi feita por Rodrigo Santanta e revisada por Alessandro Lima de um texto editado em castelhano pela Editorial Tradicón (S. A. Av. Sur 22 No. 14 - entre Oriente 259 y Canal de San Juan - , Col Agricola Oriental. Codigo Postal 08500) de 1983. A edição em castelhano (disponível no site da Congração para o Clero: http://www.clerus.org/) se deu através de um exemplar em latim intitulado

O texto bíblico citado por Santo Tomás é o da Vulgata de São Jerônimo, infelizmente as atuais traduções em português não são tão fiéis aos termos empregados nesta referência católica das Escrituras, desta forma optamos por traduzir da Vulgata os textos utilizados neste comentário, dando assim maior uniformidade e fidelidade ao texto latino de Santo Tomás.

O que nos motiva a publicar o presente trecho do comentário de Santo Tomás (sobre o capítulo 14 de 1 Cor) é que ele trata de um tema ainda muito incompreendido entre nós católicos deste século: o dom de línguas. Neste trecho de seu comentário o Doutor Angélico apresenta-nos a doutrina tradicional da Santa Igreja Católica a respeito deste tema que é de especial interesse em nosso tempo. É mister lembrar ainda que os Pontífices Romanos não só recomendaram-nos à doutrina do Aquinate (Santo Tomás), mas também em diversas oportunidades confirmaram a autoridade de seus ensinamentos para toda a Igreja Católia (alguns exemplos: Aeterni Patris de Leão XIII, Doctoris Angelici de S. Pio X , Lúmen Ecclesiae de Paulo VI, Sapientia Christiana, Laborem exercens, Inter Munera Academiaraum de João Paulo II).

Fonte da Obra:

Apostolado Tradição Católica. Prof. Alessandro Lima. Disponível em: http://www.tradicaocatolica.com.br/teologia/tomismo/67-comentario-de-santo-tomas-de-aquino-a-primeira-carta-aos-corintios Acesso em: 17 Março 2011.