Por
Eduardo Moreira.
Quem é o homem e por que ele foi criado?
Continuando os artigos anteriores, é conveniente
saber quem é o homem e por que ele foi criado. Não se fala mais hoje sobre o
que dizia o pensamento medieval acerca do homem enquanto ser racional, criado a
Imagem e Semelhança de Deus para amá-lo, tendo o livre arbítrio para decidir
que caminho seguir.
Na obra Por que Deus se fez homem de Santo Anselmo
consta que há um número perfeito planejado por Deus a ser preenchido com criaturas
racionais para gozarem junto do criador dum paraíso. Logo, os anjos foram
criados racionais para desfrutarem desse paraíso divino, mas um número dos
anjos caiu e assim o número perfeito ficou distante de ser preenchido.
Falando primeiramente dos anjos, sabemos que os que
caíram sofreram a queda por algum motivo. A primeira possibilidade é que foram
criados mais anjos que o número perfeito, o que fez com que alguns anjos
tivessem que cair posto que Deus não pôde ter calculado mal esse número. Tendo-se
que Deus é imensamente sábio e bom, essa hipótese é absurda, pois seria o mesmo
que dizer que Deus criou de má fé um número excedente de anjos, já pensando em
deixar que alguns caíssem. A segunda possibilidade é que os anjos foram criados
para fazerem parte do número perfeito, mas não prevaleceram nesse número e
assim usando sua racionalidade e seu livre arbítrio, escolheram sem retorno a
queda no pecado. Em outra oportunidade mostrar-se-á o porquê dos anjos caídos
não poderem se reconciliar, mas por hora ficará apenas que a segunda hipótese é
a mais lógica.
Se havia um número perfeito, esse número deve ser
preenchido a fim de manter a perfeição natural querida por Deus. Esse número
deve ser preenchido ao menos substituindo o número dos anjos caídos, mas ficará
claro adiante que é superior. O número perfeito pode ser atingido mediante a
criação de anjos ou de homens, todavia, a geração de novos anjos não pode
seguir a reta justiça de Deus.
Os anjos são andróginos e por isso são incapazes de
gerar novos anjos. Logo, ou Deus poderia criar novos anjos, ou poderia criar
outro ente dotado de raciocínio que fosse capaz ao menos de substituir os anjos
caídos e quiçá completar o número perfeito. Assim uma das hipóteses deveria ser
cumprida para que a obra de Deus fosse perfeita.
Em uma análise vê-se que se Deus criasse anjos novos
seria injusto posto que os anjos caídos, se não tivessem pecado seriam mais
dignos de glória que os novos anjos. Os anjos que caíram se não tivessem caído
seriam mais dignos do mesmo elogio que os anjos novos. Os antigos anjos que não
pecaram, vendo o castigo dos anjos pecadores perseveraram, mas não foi por isso
que ficaram de pé e sim por seu estado de plenitude e amor a Deus que
escolheram, ou seja, por seu próprio mérito. Se houvesse de cair algum anjo
para que os outros se confirmassem na fé, ou todos cairiam ou deveria
necessariamente haver a queda de alguns para que os outros perseverassem. Como
ambas hipóteses são absurdas, vemos que os anjos confirmados se confirmaram por
seu próprio mérito. Assim nota-se que anjos novos e antigos não seriam iguais e
isso seria, de fato, indigno.
Pelo raciocínio acima observa-se que novos anjos não
podem ser criados para substituir os antigos, pois isso seria injusto e nenhuma
injustiça pode vir de Deus. Vários motivos impedem que anjos se reconciliem com
Deus, impedindo que anjos maus voltem a fazer parte do número perfeito. Os
anjos, ao contrário dos homens, não
descendem de um mesmo anjo e por isso não podem ser remidos por um
Deus-anjo comum posto que cada anjo é único em gênero e teria que remir a si
mesmo. Deus não pode encarnar em cada anjo caído para remi-lo. Como os anjos
não têm descendência, Deus não pode se encarnar em um único anjo para remi-los
todos. Anjos não são mortais e assim não existiria o sacrifício de um Deus-anjo
bem como não pode haver encarnação de Deus num anjo posto que anjos não têm
carne. Por fim, os anjos estão em estado de plena consciência atemporal,
conhecendo no ato de sua rebeldia todas as conseqüências dessa sendo assim
incapazes de se arrependerem de alguma ação. Logo, uma vez cometido um pecado
por um anjo, ele não pode mais voltar atrás e após pecar certamente cairá.
Partindo dos dois parágrafos anteriores vemos que
Deus não pode remir os anjos e que não pode criar novos anjos, posto que a
criação de novos anjos seria uma desigualdade e uma injustiça no que tange os
méritos angelicais. Ver-se-á agora que se os anjos existiam em perfeito número,
os homens foram criados apenas para substituí-los. Por outro lado, se não havia
anjos em perfeito número, os homens foram criados de forma a substituir os
anjos réprobos e completar o número perfeito e, portanto, deverá haver mais
homens que anjos prevaricadores.
Se Deus criou os anjos em perfeito número, tem-se
que o homem foi criado após os anjos e exclusivamente para substituir esses.
Todavia, isso seria perverso, pois não pode ser digno de Deus criar o ser
humano unicamente para substituir os anjos caídos, afinal, isso soa como um
mero capricho divino. Tem-se que, por outro lado, se homens e anjos foram
criados juntos e sendo que anjos não deixam descendência, coube aos homens o
papel de completar o número imperfeito e, eventualmente se houvesse queda de
anjos, substituir esses anjos que caíram. Ora, o homem então por esse segundo
raciocínio, é, embora frágil e mortal, capaz de se elevar ao tão perfeito
estado dos anjos e com isso o homem pode certamente substituí-los. Deus
certamente em sua infinita sabedoria já estava ciente de que tanto homens como
anjos poderiam prevaricar, mas seguramente a defesa de Deus em relação aos
homens é maior devido à sua maior fragilidade. Dessa maneira, é mais lógico que
homens e anjos foram criados em número imperfeito e cabe aos homens tanto
substituir os anjos réprobos como completar o número perfeito.
Outro argumento mostra que seria perverso dizer que
os homens foram criados apenas para substituir anjos caídos: se assim fosse a
felicidade da salvação dos homens seria a mesma felicidade de se contemplar a
queda dos anjos, afinal, aquela dependeria dessa. Deus, que é infinita bondade,
não pode criar um ente que se regozije com a desgraça alheia. Logo, homens e
anjos foram criados juntos pela infinita justiça de Deus. Alguém pode objetar
dizendo que foi pela negação dos judeus que os demais povos conseguiram a
redenção, o que seria tão injusto quanto criar homens apenas para completar o
número de anjos caídos. Esse argumento é, entretanto falso. O Messias veio para
todos os homens, independentemente da aceitação dos judeus ou não. Logo, os apóstolos
não pregaram aos gentios porque os judeus não aceitaram a salvação, mas
aproveitaram que os judeus negaram o Cristo para levar o Evangelho aos que
queriam ouvi-lo, que no caso eram os gentios, pois toda pessoa que teme à Deus
e pratica o bem lhe é agradável (At 10, 35).
Se, pois, é um
inconveniente que o homem se alegre com a queda dos anjos e se não pode haver
inconveniente na Jerusalém Celeste, então é de todo impossível que os homens
tenham sido criados apenas para preencher um número de anjos caídos. Além
disso, é um número misterioso a soma dos anjos caídos com o número de homens
que falta para completar a Cidade Gloriosa, o que parece mais lógico aos
insondáveis desígnios de Deus, pois não cabe aos homens saber quantos homens
hão de se salvar. É bom dizer aqui também que não é digno de Deus criar homens
para que se percam. Deus, portanto, criou os homens sendo todos eles passíveis
de alcançarem a Salvação.