terça-feira, 13 de setembro de 2011

Cristianismo e Racionalismo

Por G. K. Chesterton.

Um amigo, o Sr. George Haw, pediu-me para expor, em um ou dois artigos, que pudessem ser inseridos no Clarion, minha crença geral na verdade do Cristianismo. Não fingirei nenhuma relutância em fazê-lo; mas eu não deveria fazê-lo antes de oferecer ao Sr. Blatchford nossa gratidão e o que é melhor que isso, nossos parabéns, a respeito do seu gesto tão generoso de ter publicado até mesmo seu periódico nas mãos de seus oponentes religiosos. Ao fazer isto, ele ganhou, numa generosa desinconsciência, um ponto autêntico.

Receio que a maior parte das terríveis revelações sobre o mal Cristão, não o da ignorância, me afetam tão gravemente quanto deveriam. Quando ouço que um professor Alemão encontrou a quadracentésima origem precisa do protoplasma, tento, em vão, sentir entusiasmo; quando leio que os selvagens pintam de verde suas faces para agradar os fantasmas (e assim por diante), não tenho nenhum sentimento além de simpatia e um vago prazer. Ambos o professor e o selvagem de cara verde parecem, para mim, estar fazendo a mesma coisa: caindo na influência desse brilhante impulso que leva os homens a fazer algo grandioso com coisas completamente inúteis.

Mas tais coisas não fazem muita diferença da minha visão a respeito do Cristianismo. Em toda essa controvérsia, senti algo forte, que de fato atingiu o Cristianismo prático; penso ser um bom argumento; acho que é um argumento terrível. Trata-se do fato de esta controvérsia estar sendo conduzida num jornal não Cristão. Certamente é um ponto marcado justamente contra a religião, pois as pessoas que parecem ser mais interessadas nela são justamente as pessoas que acreditam ser ela uma fraude. Portanto, acho que a generosidade do Sr. Blatchford, como toda generosidade, é profundamente filosófica e sábia.

Eu nem o acuso, como alguns fizeram, de discuti-lo prolixamente. Como o assunto é a natureza do Universo, fica necessariamente tão grande quanto o Universo, tão rico quanto o Universo, e, posso acrescentar, tão divertido quanto o Universo.

Na verdade, imagino que deve existir algo como a Imortalidade, para que eu e o Sr. Blatchford simplesmente tenhamos tempo pra discutir se é verdade.

Antes de resumir meu ponto de vista, há algo a dizer no qual não posso evitar uma nota pessoal. Comecei a perceber que meu modo de falar nestes assuntos parece a muita gente uma indicação de que sou leviano ou imperfeitamente sincero. Pois, na realidade, estar mais convicto neles que na existência da lua me deixa pesaroso; mas busco ver a naturalidade do erro e como ele surgiu nas pessoas quando expulsas da atmosfera Cristã. O Cristianismo é em si tão alegre que enche seu possuidor de certa exuberância boba, a qual os tristes e exultantes Racionalistas podem razoavelmente compreender mal, por simples tolice ou blasfêmia; como seus protótipos, os tristes e exultantes Estoicos da velha Roma, eles fizeram da alegria Cristã palhaçada e blasfêmia.

Esta diferença conserva bom todo lugar, desde a fria arquitetura Pagã e as sorridentes gárgulas da Cristandade, até o absurdo multicolorido das Idades Médias e o sujo vestido deste século Racionalista. E se o Sr. Blatchford deseja saber porque deveríamos estar surpresos se o Duque de Devonshire andou com uma perna vermelha e outra amarela (como um nobre também o faria no século XIII), posso obsequiosamente informar-lhe que isto acontece por decadência de nossa fé. Em lugar nenhum na história existiu qualquer brilho popular ou alegria sem religião.

A primeira de todas as dificuldades que tenho em debater com o Sr. Blatchford é simplesmente esta: estarei andando prodigiosamente sobre sua base. Meu compêndio predileto de teologia é “Deus e minha Vizinhança”[2] mas não posso dizê-lo em detalhes. Se dei cada uma das minhas razões pra ser Cristão, elas seriam, em grande número, as mesmas que o Sr. Blatchford tem pra não ser.

Por exemplo, o Sr. Blatchford e sua escola assinalam que existem muitos mitos paralelos aos da estória Cristã; que existiram Cristos Pagãos, Índios Pele-Vermelha, Crucificações Patagonianas, e tudo isso eu conheço e aprecio. Mas o Sr. Blatchford não vê o outro lado deste fato? Se o Deus Cristão realmente gerou a raça humana, não tenderia a raça humana a divulgar os boatos e depravações do Deus Cristão? Se o centro de nossa vida é um fato, não estariam as pessoas longe do centro tendo uma versão confusa de tal fato? Se em nossa condição precisamos de que nos livre o Filho de Deus, seria estranho que os Patagônicos devessem sonhar com um Filho de Deus?

A posição Blatchfordiana na verdade equivale a isto: algo vem impressionando, como provável ou necessário, milhões de pessoas diferentes, logo, isto não pode ser verdadeiro. E depois, este tímido ser, ocultando seus próprios talentos, acusa o miserável G. K. C. de paradoxo! Gosto do paradoxo, mas não estou preparado pra dançar segundo o Nunquam ou encantar a quem aponta para a humanidade a clamar por algo - para ela apontando desde tempos imemoriais - como uma prova de que o objeto apontado não deve estar lá.

A estória de um Messias é muito comum em lendas e na literatura. Assim é a estória de dois amantes separados pelo Destino. Assim é a estória de dois amigos se matando por uma mulher. Mas isto seria mantido seriamente pelo fato de serem essas duas estórias comuns como lendas, embora nenhum dos dois amigos estivessem separados pelo amor ou nenhum dos dois amantes pelas circunstâncias? Certamente, é razoavelmente natural que estas duas estórias sejam comuns, pois nelas a situação é humana e intensamente provável e nossa natureza é feita como que para torná-las quase inevitáveis.

Por que não seria nossa natureza criada como que para para tornar certos eventos espirituais inevitáveis? Em todo o caso, é claramente ridículo tentar refutar o Cristianismo pela quantidade e variedade dos Cristos Pagãos. Você pode também pegar o número e variedade de esquemas ideais de sociedade, d'A República' de Platão ao 'Novas de lugar nenhum' de Morris, da 'Utopia' de More à 'Merrie England' de Blatchford, e depois tentar provar partindo delas que a humanidade nunca pode alcançar uma condição social melhor. Se fazem algo, é claro, trata-se do oposto disso; sugerem uma tendência humana que se dirige a um mundo melhor.

Assim, em primeira instância, quando os céticos estudados vem dizendo, “tem certeza de que os Kaffirs tem uma estória de Incarnação?” Devo replicar: “Falando como um leigo, não posso saber. Mas falando como um Cristão, devo estar muito impressionado se não tiverem.”

Tomemos um segundo exemplo. O Secularista diz que o Cristianismo foi ascético e sombrio, e aponta para a procissão de santos austeros e ferozes que abandonaram seus lares e sua felicidade e largaram a saúde e o sexo. Mas nunca parece ocorrer a ele que a esquisitice e plena sujeição deles muito faz parecer que houvesse realmente algo real e sólido naquilo pelo qual se doaram. Cederam à todas as experiências humanas por uma sobre-humana. Eles podem ter sido perversos, mas parece que aquela experiência ocorreu.

É perfeitamente defensável que esta experiência, tanto quanto a bebida, é perigosa e egoísta. Um sem-teto que anda maltrapilho, disposto a ter visões, pode ser tão repugnante e imoral quanto um sem-teto que anda maltrapilho, disposto a beber conhaque. É uma postura bastante razoável. Mas dizer que o que não é claramente uma postura razoável não estaria muito longe, na verdade, de ser uma postura insana, seria dizer que o desleixo, a indigência e o penoso aviltamento do homem provaram que não existia conhaque.

É precisamente o que tenta afirmar o Secularista. Tenta provar que não há como pensar na experiência sobrenatural como algo pelo qual as pessoas doaram tudo. Tenta provar que isso não existe demonstrando que existem pessoas que vivem desmotivadas.

De novo, posso docilmente perguntar: “De quem é o paradoxo?” O frenético rigor desses homens pode, é claro, mostrar que aquelas foram pessoas excêntricas que amaram a infelicidade pra seu próprio bem. Mas parece mais de acordo com o bom senso supor que eles tinha realmente descoberto o segredo de algum poder ou experiência real a qual foi, como vinho, uma terrível consolação e uma alegria solitária.

Assim, em seguida, num segundo exemplo, quando o cético culto diz pra mim: “Santos Cristãos deixaram amor e liberdade por tal êxtase do Cristianismo," eu deveria replicar: "Foi um grande erro deles. Mas, tendo alguma noção do êxtase do Cristianismo, eu deveria estar surpreso se não houvessem deixado.”

Tomemos um terceiro caso. O Secularista diz que o Cristianismo fomentou desordem e crueldade. Ele parece sugerir que isto prova ser mal o Cristianismo. Mas eles podem provar o contrário. Homens cometem crimes não somente por coisa más, mas frequentemente por coisas boas. As coisas ruins podem ser desejadas tão apaixonada e persistentemente quanto as boas, mas apenas homens muito excepcionais desejam coisas muito anormais e más.

A maior parte do crime é cometida porque, devido a alguma complicação peculiar, muitas coisas belas e essenciais residem nalgum perigo. Por exemplo, se quisermos acabar com o roubo e com a burla com apenas um golpe, a melhor coisa a fazer seria acabar com as criancinhas. As criancinhas, que são a coisa mais linda do mundo, têm sido o subterfúgio da selvageria e a origem da crise financeira da terra. Se pudéssemos abolir o amor romântico ou monogâmico, novamente o país seria dotado de assizes[3] de donzelas. E se em alguma parte da história massas de homens comuns e amáveis se tornaram cruéis, isto, quase com certeza, não significa que eles estão servindo a algo tirânico em si mesmo (por que deveriam?), mas que, quase com certeza, aquilo que racionalmente valorizam está em perigo, como o alimento de seus filhos, a pureza de suas mulheres ou a independência de seus países. E quando algo se coloca diante deles que não só seja extremamente valioso, mas suficientemente novo, o súbito pressentimento, a chance de ganhar ou perder, guia sua loucura. Isso tem, na vida moral, o mesmo efeito que tem a descoberta do ouro na economia do mundo. Isso inverte os valores e cria uma espécie de ímpeto cruel.

No caso dos exemplos religiosos não precisamos ir tão longe. Quando as doutrinas modernas de irmandade e liberdade foram pregadas na França no século XVIII, o tempo era oportuno a elas, em todo lugar as classes cultas a elas aderiram, de modo considerável o mundo as acolheu. E mesmo com todo aquele aparato e aquela abertura foram incapazes de prevenir o rebento da raiva e a agonia que cumprimentam tudo o que é bom. E se o lerdo e cortês pregador da fraternidade racional numa era racional acabou nos massacres de Setembro, que grande a fortiori temos aqui, não? Qual seria, provavelmente, o resultado da queda brusca de uma verdade terrivelmente perfeita num século terrivelmente mal? O que aconteceria se um mundo tão simples quanto o de Sade[4] fosse confrontado com um evangelho tão puro quanto o de Rousseau?

O mero arremesso do seixo polido da República Idealista no lago artificial da Europa do século XVIII produziu um borrifo que parecia respingar os céus, produziu também a tempestade que afogou dez mil homens. O que aconteceria se uma estrela realmente caísse do céu na sangrenta e pegajosa piscina de uma humanidade decaída e desesperada? Os homens varreriam uma cidade com a guilhotina e um continente com o sabre, porque a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade foram preciosas demais pra ser perdidas. Como aconteceria com o Cristianismo, então, quando este era ainda mais enlouquecedor pelo simples fato de ser ainda mais precioso?

Mas por que deveríamos relembrar o momento em que Aquele que conheceu a natureza humana como ela realmente pode ser conhecida, desde pescadores e mulheres a pessoas naturais, viu, da sua pacata vila, o caminho desta verdade através da história, e, ao dizer que Ele veio trazer não a paz mas a espada, colocou eternamente Seu colossal realismo contra o eterno sentimentalismo do Secularista?

Assim, já no terceiro caso, quando o cultíssimo cético dissesse: “O Cristianismo produziu guerras e perseguições,” deveríamos responder: “Naturalmente.”

E, por fim, permita-me tomar um exemplo que me leva diretamente ao assunto geral que desejo discutir até o fim do percurso dos artigos pelos quais sou responsável. O Secularista constantemente assinala que as religiões Hebraica e Cristã surgiram como problemas locais; que seu deus era um deus tribal; que elas deram a ele forma material e o anexaram a lugares específicos.

Este é um exemplo excelente das coisas que eu deveria usar pra salientar a validade da experiência Bíblica, se estivesse conduzindo uma campanha detalhada. Pois se existem realmente seres mais elevados que nós e se eles, de algum modo estranho, nalguma crise emocional, realmente revelaram-se a rústicos poetas ou sonhadores de tempos singelos, então aquele povo rústico deveria realmente considerar provinciana a revelação e ligá-la a colina específica ou ao rio específico onde ocorreu, e me parece que isso é o que qualquer ser humano racional esperaria. Isso tem uma aparência muito mais verossímil do que se eles houvessem falado de filosofia cósmica desde o início. Se houvessem, eu deveria ter desconfiado do “sacerdócio,” das falsificações e do Gnosticismo do século III.

Se esse tal de Deus existe, se pode falar com uma criança, e se, de fato, falasse com uma criança no jardim, é claro que ela iria dizer que Deus morara no jardim. Não posso pensar que isso é pouco provável por esse motivo. Se a criança dissesse: “Deus está em todo canto: uma essência intocável que permeia e apoia todos os componentes do Cosmos de igual modo" – digo que se o infante me falasse isso com os termos acima, eu pensaria que era muito provável que tratava-se mais da governanta do que de Deus.

Se Moisés tinha Deus como uma Energia Infinita, eu estaria certo de que ele não via nada de extraordinário. Se dissesse que Deus era uma Sarça Ardente, penso que aí sim ele viu algo extraordinário. Pois qualquer que seja o Segredo Divino, e se tem ou não quebrado limites às vezes (como acreditam todas as pessoas) ou surgido no nosso trabalho, pelo menos isto está bem longe dos pedantes e suas definições, e mais próximo das almas admiráveis de pessoas sossegadas, de seu amor à região nativa e da beleza dos arbustos.

Então, em última instância (fora as cem que poderiam ser tomadas), chegamos ao mesmo lugar. Quando o cético instruído disser: “As visões do Antigo Testamento foram provincianas, rústicas e grotescas,” diremos: “Claro! Elas foram reais.”

Então, como eu dizia no início, me encontro, pra começar, face a face com uma dificuldade: mencionar as razões pelas quais acredito no Cristianismo é, em muitos casos, o mesmo que repetir aqueles argumentos que o Sr. Blatchford, estranhamente, parece considerar argumentos contra ele. Seu livro é realmente rico e eficaz. Ele sem dúvida levantou essas quatro armas formidáveis das quais falei. Não tenho nada a dizer contra o tamanho e munição dessas armas. Só acho que por algum acidente no arranjo ele apontou a culatra daquelas quatro peças de artilharia para mim, e as bocas para si mesmo. Se eu não fosse tão compassivo, eu devia dizer: “Senhores da Guarda Secularista, o primeiro disparo.”

E digo mais: o Sr. Blatchford, por uma razão ou outra (possivelmente falta de espaço), negou explicar todos os argumentos para o Cristianismo. E, estranhamente, os dois ou três argumentos que ele resolveu ocultar são os realmente essenciais e vitais. Sem eles, mesmo os quatro fatos excelentes, que ele e eu temos, respectivamente, explicado, podem parecer superficiais e ininteligíveis.

Por que muitos de vocês não aceitarão minhas explicações? Obviamente, na simples lógica, elas são tão lógicas quanto as do Sr. Blatchford. É razoável, em suma, que a verdade deveria ser distorcida tanto quanto a mentira; é razoável, suponho, que os homens devem ser mortos por fome e pecado, mas mais por um real benefício que por um benefício inexistente. Você não irá acreditar nisto porque você tá armado até os dentes, e abotoado até o queixo, com a grande Ortodoxia Agnóstica, talvez a mais plácida e perfeita das ortodoxias do meio termo. Você daria mais crédito a um Sócrates que foi um espião Governamental do que a um Sócrates que ouviu a voz de seu Deus. Você poderia pensar mais facilmente ter Cristo assassinado Sua mãe, que ter tido Ele uma energia psíquica da qual nada sabemos. Então eu me achegaria a você reverente e corajoso, como a um tribunal de bispos.
Notas:

[1] Jornal inglês.

[2] Livro de Robert Blatchford.

[3] Processos judiciários.

[4] Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, foi um aristocrata francês e escritor libertino.

Fonte:

CHESTERTON, G. K. Cristianismo e racionalismo. [título original: Christianity and Rationalism, tradução de Wendy A. Carvalho]. Site Chesterton Brasil. Disponível em: http://chestertonbrasil.blogspot.com/2011/09/cristianismo-e-racionalismo.html Acesso em: 13 Setembro 2011.